Conheço pessoas verdadeiramente inteligentes que têm apreço pela leitura sociológica da literatura; essa é a leitura mais comum no Brasil, hoje, em universidades & no extremamente exíguo nicho de leitores do nosso país de dimensões continentais, como é costume dizer.
Acho que aquelas pessoas inteligentes, na verdade, ainda não foram expostas a outras coisas, talvez pelo motivo de que há esse imobilismo auto-satisfeito num meio literário tão pequeno & de tão poucas ambições.
Não digo "crítica sociológica" porque nada tem de crítica. Crítica, da raiz grega, significa discernir, & os sociólogos não fazem isso: a literatura é a ilustração de um processo social, para esses leitores. Assim na Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, nos dois livros sobre Machado de Assis, de Roberto Schwarz, por exemplo.
Quando escolhem, quando praticam o grego discernimento, costumam errar: Candido errou com Sousândrade & Odorico Mendes (Gregório de Matos é um erro do método que aplicou, & não um erro dele, lui-même, Candido), Schwarz não percebe Machado de Assis além dos limites de suas idéias sobre a sociedade carioca do período, não o vê formalmente (seu capítulo sobre forma em Machado é curiosamente vazio de questões formais). Criticou mal um poema ótimo de Augusto de Campos, com o qual não se familiarizara: revelou-se que era questão ideológica, de política cultural, apenas.
A sociologia aplicada à literatura é um dos motivos de ser tão difícil encontrar quem saiba ler forma, intersecções entre as obras dos autores, as fontes, & mais difícil ainda encontrar quem saiba diferenciar as coisas qualitativamente (arrepiam-se todos ao som da palavra "qualidade"). Enfim, quem saiba efetivamente ler como crítico. Os jornais desistiram, a universidade em geral quer apenas Weltanschauung & alguma teoria, escritores dão seus palpites, and so on.
Isso tudo é para introduzir o assunto, minhas recentes releituras dos ensaios de Otto Maria Carpeaux. Não, isso não se deu por adquirir os dois imensos & recentes volumes da Topbooks, que teriam arruinado o parco orçamento deste poeta: consegui, num sebo, os Vinte e Cinco Anos de Literatura, coletânea publicada pela Civilização Brasileira, em 1968, de preço muitíssimo mais modesto.
Lamento que a memória brasileira seja proverbialmente tão curta.
Esse austríaco que veio para cá fugido do nazismo era um dos homens mais cultos de que tenho notícia, leitor de habilidades comparativas únicas, também porque possuía uma memória como a daqueles antigos mestres de retórica que guardavam tudo na cabeça com uma poderosa & quase mística ars memoriae.
Não apenas: era a nossa versão de Montaigne, que ele amava. A arte de sua escrita não raro nos comove no meio de um ensaio, & nos perguntamos como, já que trata-se de literatura crítica. Escreveu nesta língua portuguesa com frases velozes & certeiras, a velocidade de uma mente que produzia sínteses o tempo todo ao se mover sobre um assunto. Não conheço texto crítico em português dotado de tanta energia, redigido com tanta arte & fineza.
Seu humor estava sempre presente, sofisticado, &, por vezes, ácido. Seus ensaios cobrem um universo de livros espantosamente amplo, & com observações sempre específicas. Aqui ele lê Vico, Casanova, Machado de Assis (numa audaciosa aproximação com a prosa filosófica de Leopardi), repassa Dante Alighieri através de suas leituras desde garoto, espeta Aldous Huxley, espinafra as idiotices de Mendes dos Remédios, comenta Kafka, Bach, Lorca, Utrillo, Jacobsen, etc. Até um saboroso ensaio sobre Gioachino Belli, "Roma Sotteranea". Conheço apenas um crítico tão variadamente culto hoje no Brasil. Nenhum que o ultrapasse.
Carpeaux é um tesouro que exploramos mal. Somos muito ingratos trocando o acervo brilhante de suas agudas percepções, que foram um verdadeiro presente, por outros autores que se pegam em questiúnculas bacanas para seminários acadêmicos & para a Flip, & nada mais. Substância crítica se encontra na obra de Carpeaux.
Abaixo, uma breve coleção de aperitivos para aqueles que quiserem mais tarde fazer a refeição completa:
De "Vico Vivo" (1941)
Se os contemporâneos houvessem compreendido Vico, nenhum dos partidos em luta teria ficado satisfeito. Vico poderia dizer, com Valéry: Je ne suis ni de droite ni de gauche. Num tempo em que a gente é interrogada, em cada esquina, sobre a que partido pertence, Vico teria tido a coragem de passar sem ouvir a pergunta. Não teria temido o campo de concentração, pois já estava dentro dele, nem o ostracismo, já que o espírito superior o merece. Passaria por um pessimista excessivo, porque esperava auroras que ainda não resplandeceram. Submerge-se num passado que se foi, e num futuro que está por vir, pois compreende mais profundamente do que os outros o presente.
De "Uma Fonte da Filosofia de Machado de Assis"
Em Leopardi também se encontra o motivo que sugere a impressão de cepticismo ao leitor de Machado de Assis. Como materialistas epicureus, o erudito grecista Leopardi e o "mulato grego" Machado seriam "pagãos"; mas na verdade não podem existir pagãos depois do advento do cristianismo. Fica, até nos anticristãos, o estímulo da inquietação espiritual, do "cepticismo" pascaliano. Machado foi leitor de Pascal, Leopardi também foi leitor de Pascal (...) Mas por serem pascalianos, ainda não eram cristãos: Leopardi consolava-se com a "morte eterna" ("a matéria liberta para sempre da alma extinta", diz o nosso poeta), e o outro com o pensamento de não ter transmitido " a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".
De "Baudelaire e a Liberdade"
Baudelaire é poeta; e "os poetas mentem muito", dizia Platão. Qualquer que seja o verdadeiro sentido da expressão misteriosa do filósofo, está certo que hoje se admitem mentiras de todas as espécies, menos as mentiras dos poetas. Todos os campos ideológicos fazem os maiores esforços para obrigar os poetas a dizer a Verdade (...) Se o poeta se recusa a isso, a sua poesia fica estigmatizada como passatempo frívolo e até perigoso. Ninguém teria respondido a essa acusação com desprezo maior que Baudelaire, ou antes respondeu realmente: Quand on définit les droits de l'homme, on oubliait deux droits importants: le droit de se contredire, et le droit de s'en aller.
De "A Erudição do Professor Mendes"
Escolha tão judiciosa dos nomes essenciais chega às vezes a comprometer o sentido das próprias apreciações do Prof. Mendes. À literatura inglesa do Século XVIII o erudito dá a nota "é de esplendor"; mas por que "esplendor" se o historiador deslumbrado riscou os nomes de Burns, Blake, Fielding e Sterne? Outra vez, as omissões servem para justificar uma atitude: depois de ignorar Donne, George Herbert, Ben Jonson, Webster, e Marvell é mais fácil falar de "decadência" e "mau gosto" do maior dos séculos da história literária inglesa, o XVII.
De "O Outro Casanova"
O palco dessa história é a Veneza da época de Goldoni: paixão pela comédia e pela ópera em teatros feèricamente iluminados de velas, os salões de jogo do Ridotto, os espiões e delatores do terrível Conselho dos Dez, os palácios e os canais, as máscaras, o carnaval e o minueto, os ritos bizantinos da Sereníssima República e o ateísmo de Enciclopedistas afrancesados. Eis a Veneza de Casanova, mas o palco da sua vida é a Europa inteira, na última época em que o estilo da vida era o mesmo em todos os países, de Madri até Petersburgo (...)
É a época de Mozart. É um século, sem dúvida, de terríveis injustiças sociais e de muita sujeira moral e física. Também é a última época em que a Europa teve um estilo completo: no savoir vivre e na indumentária, nos móveis e na cozinha, nas artes e no amor. O último estilo internacional, europeu. O Laclos das Liaisons dangereuses ainda tem esse estilo, do qual um reflexo sobreviverá na Chartreuse de Parme.
De "A Erudição de Mr. Huxley"
Alguns leitores do meu livro Presenças escandalizaram-se com a irreverência com que eu tinha tratado a mundialmente famosa erudição do romancista Aldous Huxley. Como foi? Aldous Huxley - cuja leitura preferida é, conforme sua própria confissão, a Encyclopaedia Britannica - respondeu a uma enquête, dizendo alguma coisa sobre a bondade como fundamento da poesia e afirmando que um criminoso não pode ser bom poeta. Acontece que François Villon, considerado por muitos, e com boas razões, como o maior poeta de língua francesa, foi vagabundo, escroque, sacrílego e assassino. Concluí que Aldous Huxley ainda não tinha chegado, na leitura de seu livro preferido, até o volume XXIII, verbete Villon.
De "Alexandria ou a Inteligência"
Fala-se em pastiche. Mas desde quando se usa esse termo pejorativo? Exatamente desde o Século XVIII, quando venceu a nossa teoria estética da originalidade que atribui a gênese das obras de arte à misteriosa inspiração do poeta. Inspirado por quem?
Que é que essa teoria exige? Exige que o poeta aproveite, para fazer seu poema, exclusivamente suas emoções, os movimentos de seu coração. Mas por que não poderá ele aproveitar, igualmente, o que ele sabe, isto é, os movimentos de sua inteligência?
A resposta só pode ser positiva: a inteligência tem os mesmos direitos da emoção. Falta de originalidade? Não importa o material. Importa o que o artista sabe fazer do seu material.
5 comentários:
Bravo!
Calixto
cara, o carpeux sabe muito.
mas, me esclareça a frase: "Conheço apenas um crítico tão variadamente culto hoje no Brasil."
quem é esse crítico misterioso? :^)
abbracci,
paulo
só não entendi porque o elogio de Carpeaux precisa passar pela cotovelada na crítica "sociológica"... ela hoje anda tão desamparada. Pense, o Schwarz já vai pelos 70 anos e não se consegue nomear um crítico mais novo representante dessa crítica. Ora, por que ela importa tanto ? Há conservadores, pós-concretos, pós-estrutularistas, cultural-studies, pós-utópicos etc. Todos pintando o sete no nosso ambiente intelectual. Eles não merecem consideração ?
De resto, Carpeaux merece sim muito mais estudo e apreço do que tem, a começar pela visão da unidade da civilização ocidental, um verdadeiro intelectual "goetheando".
Abraço,
Leandro
Leandro, caríssimo,
tudo bem?
Não imagine isso como uma cotovelada (não era o propósito), que é coisa mui violenta. Foi um pequeno reparo comparativo.
A sociologia literária é ativíssima nas universidaes, em cadernos de cultura, em publicações de livros.
É o modo mais destacado no Brasil, país que tem, como você assinala com justiça, importado recentemente uns aparelhos com defeito, vindos sobretudo dos EUA.
Acho que se deu uma confusão: a leitura sociológica foi tomada como um tipo de crítica literária (que não é, é estudo social da cultura letrada) & se generalizou.
Daí ofereci a rudeza do nosso esquecimento com o brilhante Carpeaux como uma oportunidade de repensarmos o trajeto. Alguns trajetos feitos no escuro acabam mal.
Abrazo!
D.
Concordo com a resposta do Dirceu à observação do Leandro. Até entendo isso de que o Schwarz não "conseguiu nomear" um crítico mais novo para o seu, digamos, "posto" — mas as universidades (embora eu fale aqui a partir de minha experiência, que não é lá tão vasta) continuam trabalhando sobre esse modelo. Modelo que não é de crítica literária — tem seu valor, mas não dentro dos parâmetros da crítica.
No mais, tudo o que foi dito sobre o Carpeaux é absolutamente verdadeiro. Inclusive que os calhamaços da Topbooks são "incompráveis".
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