terça-feira, 29 de dezembro de 2009

GOT BOOK (finale) & Icterofagia na Letras en Línea

A verdade é que a minha campanha GOT BOOK?, que trazia celebridades posando com livros astutos & belos, miou. Por dois motivos eloqüentes:

1) as celebridades são muito caras & meus bolsos têm furos;

2) Caio Gagliardi, amicus meus, crítico literário & leitor fino, enviou o link de um blog realmente exaustivo sobre essas & outras imagens de livros & leitores (grato gratíssimo, meu caro), achável aqui:


Mas façamos uma despedida comme il faut: selecionei & comentei abaixo, brevemente, alguns dos filmes mais interessantes que já vi sobre livros, esse objeto em extinção. É uma despedida também do anno terribilis de 2009. Que venha 2010.

Gaudete.

1) Fahrenheit 451(1966), de François Truffaut (baseado no livro esperto de Ray Bradbury sobre um futuro em que os livros são proibidos — porque confundiriam as idéias, as emoções & seriam um perigo social numa época de grandes TVs & trabalho meramente burocrático —, com os bombeiros tornando-se uns piroburocratas, queimando livros, como a Inquisição, Savonarola & Hitler o fizeram antes. Truffaut é simplesmente um mestre, & este é um filme imprescindível).

"Achei um livro escondido no lustre"

2) The Name of the Rose (1986), de Jean-Jacques Annaud. O livro mais ou menos de Umberto Eco — porque Eco entope a narrativa com sua soberba erudição acadêmica, & faz um William de Baskerville (personagem que mistura Sherlock Holmes & Roger Bacon) menos sólido do que o interpretado por Sean Connery — vira um filme enxuto, preciso, & uma verdadeira beleza para os olhos, com velhos manuscritos iluminados & a gigantesca biblioteca labiríntica — do mosteiro onde acontecerá a disputa entre franciscanos & dominicanos — que parece um sonho borgiano. Os livros iluminados que aparecem no filme foram feitos por monges que ainda hoje se dedicam, em alguma parte da Europa de que no quiero acordarme, ao artesanato incomparável da iluminação de manuscritos.


"Elementar, meu caro Adso"



3) 84 Charing Cross Road (1987), de David Hugh Jones. Meio sentimental, porque a escritora vivida por Anne Bancroft — que se deu muito melhor interpretando a inesquecível Mrs. Robinson — é uma escritora de quinta categoria; mas o livreiro vivido por Anthony Hopkins é brilhante. A livraria dele também. Enfim, apenas para sentimentais, ou amantes de livros, ou interessados na carreira de Hopkins.




4) Prospero’s Books (1991), de Peter Greenaway. Greenaway adapta The Tempest — uma das últimas & melhores peças de Shakespeare, ao que se diz, já no teatro de corte, fechado, de Blackfriars —, sobre a magia livresca que instaura a desordem & reconduz tudo à paz, que se torna uma festa visual que Greenaway talvez imagine como “barroca”, desdobrando em cena os curiosíssimos fólios mágicos que Próspero usa em seu plano de exílio para reaver o ducado de Milão, em poder de seu irmão usurpador.



5) Faust (1994), de Jan Švankmajer. Neste filme do bizarríssimo diretor tcheco, autor de filmes ímpares, como Little Otik ou Alice, temos um camarada que é levado, por uns panfletários Cornelius e Valdez, e caminhos tortuosos, aos bastidores de um velho teatro onde (vestindo-se como o velho doutor alemão das lendas que deram nas peças de Marlowe e Goethe) encontra um roteiro que passa a ler em voz alta — após uns dez minutos de filme sem som. É o começo do Faust, de Goethe, e daí para diante temos uma esdrúxula adaptação de várias obras que abordaram o personagem, incluindo a música de Gounod, em um filme com imensas marionetes & efeitos de stop motion. Está aqui porque é o livro que põe tudo a funcionar, transtorna a vida do pequeno burocrata, & serve para invocar Mefistófeles, que tem a cara daqueles demônios medievais das gravuras quatrocentistas de Das Buch Belial.





6) O Convento (1995), de Manoel de Oliveira. Michael Padovic, que é John Malkovitch interpretando aquele personagem educado & meio aéreo em que se especializou, procura provas num convento português para sua tese de que Shakespeare na verdade nasceu na Espanha; mas sua esposa é Catherine Deneuve, o diretor é Oliveira, temos um sujeito endiabrado (Luís Miguel Cintra) & uma bela moça pudica (Leonor Silveira), o que resulta em algo muito peculiar.




7) Henry Fool (1997), de Hal Hartley. Não especificamente sobre livro, mas o efeito dos livros (de poesia), & realmente bom, dramédia esperta & meio underground. Um escritor pretensamente beatnik, o esquisito Henry do título, ensina Simon, um cara tímido, perdido numa vida sem sentido, suburbana & medíocre, a ser poeta (o que, como sabemos, não costuma mudar nada nessas condições de vida, mas aplique-se no caso a suspension of disbelief, de Coleridge). Parece que ensina muito bem.




8) The Ninth Gate (1999), de Roman Polanski. Excelente filme — um dos melhores aqui — sobre um extraordinário incunábulo de segredos diabólicos, com apenas três cópias em coleções particulares européias, & sobre o malandro negociador de livros raros que é contratado para autenticar uma das cópias, cotejando-a com as outras duas, em Portugal & na França. Baseado no bom livro de Arturo Pèrez-Reverte, El Club Dumas. O livro de Reverte ainda tem uma subtrama sobre os Três Mosqueteiros, de Dumas — sobretudo o capítulo XLII, Le vin d’Anjou, que não há no filme.

"Sim, essas páginas soam genuinamente século XVII", pensa Johnny Depp



Corso (Depp) lê & descobre na biblioteca da Baronesa Kessler (Barbara Jefford)


9) Va Savoir (2001), de Jacques Rivette. Ugo (Sergio Castellitto) procura uma peça perdida de Goldoni enquanto sua companhia monta uma peça de Pirandello em Paris, &, sortudo ou azarado, acha mais do que isso. Diria sortudo, but that’s me. Uma comédia de situação com atores muy buenos, incluindo Jeanne Balibar & Helène de Fougerolles, & tudo très joyeux. Jacques Rivette, no jargão de críticos de cinema, em ótima forma.


"Ahn, quem sabe...", Sergio Castellitto ainda em dúvida

***


Em tempo: a ótima revista virtual Letras en Línea publicou as traduções que o poeta chileno Fernando Pérez Villalón fez para seis poemas do meu Icterofagia, com uma introdução mui simpática. Acha-se tudo aqui:


http://www.letrasenlinea.cl/traduccionpoesia/traducc-dirceu.html



And that's all, folks.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

DOIS ENCONTROS NA CASA DAS ROSAS


Afonso X, Marquesa de Alorna, Sousândrade, Qorpo-Santo, Gomes Leal & Luís Aranha,
alguns dos poetas de que falarei nos encontros

Nos dias 17 & 18 de dezembro, falarei na Casa das Rosas sobre o mecanismo que deixou poetas importantes na sombra da história das literaturas portuguesa & brasileira, & da leitura muito redutora de muitos que entraram briosamente.

Ou discutirei "o modo pelo qual, desde o século XIX, as antologias de literatura, produzidas pela crítica e pelo ensino, se fizeram pelo método de encontrar a peça típica de um movimento, em vez de se pautarem por critérios de qualidade e percepção, marginalizando ou excluindo alguns dos melhores autores do foco da atenção pública e especializada", como está na divulgação.



CÂNONE, TRADIÇÃO, ANTOLOGIAS, ENSINO
com Dirceu Villa.

Dias: 17 e 18 de dezembro. Horário: 19h30 às 21h30.

Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura
Avenida Paulista, 37
Próximo à Estação Brigadeiro do Metrô

Tel.: (11) 3285.6986
www.casadasrosas-sp.org.br

sábado, 12 de dezembro de 2009

O Coro de Fúrias, de Basil Bunting (& lançamentos)

Basil Bunting, em foto de Jonathan Williams

Basil Bunting (1900-1985), poeta inglês de Northumberland que deixou uma obra tão reduzida quanto brilhante em seus Complete Poems — que não chegam a 300 páginas — foi pouco traduzido no Brasil (conheço as traduções de Nelson Ascher & de Ricardo Domeneck) & razoavelmente ignorado no mundo até que o redescobriram nos anos 60.

Traduzi o poema 10 — escrito em 1929— de seu First Book of Odes. Sua concisão é, até pelo título, horaciana; Bunting sempre foi um poeta para quem o som esteve no centro da escrita do poema, & ele, sabiamente, sugeria compor em voz alta.

O poema puxa as referências da Orestéia de Ésquilo, sobretudo da última peça, as Eumênides, que perseguem Orestes por matar a mãe Clitemnestra para vingar o pai, Agamêmnon, morto por ela. Basicamente, o rapaz estava entre a cruz & a espada em seus deveres filiais.

Mas creio que Bunting estava atento não apenas a isso, mas a toda história das Fúrias (a epígrafe é Dante, do Inferno, IX, 45), com Tereu & Procne, ou cutucadas pela ciumenta Hera, etc. E também a modifica a seus próprios interesses, obviamente.

O Coro de Fúrias
eeeeeeeeeeGuarda mi disse, le feroce Erine

Desçamos-lhe então como num sonho, antes,
tripla e anônima presença;
memória-substância que o coração derrote:
e óbvias no Agora desperto, o instante
parece a esta vida sua essência,
tumba ao toque humano, a si um Iscariotes.
Desprezará a contínua carícia do ano,
sem esperança de divórcio,
invejando a apatia idiota ou o dano
de um tão claro remorso.
Aceitará meia-vida para que a tensão
de sua mente alerta
não chame os demônios ou nova aparição
com más ofertas.
Encolherá; virilidade, frágil zelo,
pele de esfolado: desespero.
Aninhará seu terror, paciente
e incerto de alívio na morte,
impotente contra a forte
dispersão da alma, dissolução da mente.

***

Em tempo, leitoras & leitores: nesta próxima terça, dia 15 de dezembro, haverá um realmente múltiplo lançamento no Bar Balcão, Rua Dr. Melo Alves, 150, aqui em SP.

É o segundo número impresso da Modo de Usar & Co. (de que participo com traduções de Ezra Pound), & são também 4 livros de poemas da coleção ás de colete, da Cosac & Naify com a 7 letras: Monodrama, de Carlito Azevedo, Mapoteca, de Felipe Nepomuceno, Ambiente, de Walter Gam e Sons: Arranjo: Garganta, de Ricardo Domeneck.

Informazioni acháveis aqui:


***

E mais: Marcelo Araújo, do SESC, pede-me divulgação para Boris Schnaiderman, em leitura de Tolstói & entrevista, que domingo, dia 13, irá ao ar em transmissão direta do SESC Pompéia, aqui:

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

a pesca no estreito de bering, uma valsa

Foto de J. Minchew, guarda costeira dos EUA


em grupos,
se agregam gaivotas:
grades de gaiolas repletas
de caranguejo real

homens de óleo e metal
agarram as gaiolas gritando
“dinheiro!”
— festejam

carapaça em toneladas
desliza pra carga
— com água na proa —,
empilhada

disparam cordames,
roldanas mecânicas,
dragam as presas e guincham
gaivotas à volta

estala o metal no convés,
a equipagem derrapa,
lavada de ondas de vento:
quarenta nós, noroeste

covos e patas quebradas
no porão entupido e o barco
afunda: agulha,
almofada

a casa do leme escurece
sob o vagalhão frio,
a pesca
no estreito de bering

por um fio.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

CHAOS REIGNS


"Reina o caos", diz a raposa eviscerada.

Houve três filmes interessantes (um deles, o de von Trier, uma obra-prima) & violentíssimos recentemente. Tipos diferentes de violência, mas é curioso sentir essa carga tão específica de violência no próprio significado de cada um deles. É uma ênfase muito nítida na brutalidade da vida, & isso tem um sentido para a nossa época.

Antichrist, como o título deixa claro, foi feito por um cristão em crise. É uma obra-prima porque o homem, nesse caso, é o dinamarquês Lars von Trier, que ele-mesmo diz ser o maior cineasta de tout le monde (ele deve admitir, em todo caso, que joga na mesma liga de, ao menos, David Lynch).

Não é um delírio de grandeza infundado, embora se possa dizer que há certo exagero na coisa. Esse é um filme muitíssimo perturbador, que vai de um desastre lutuoso à tortura psicológica & à tortura física. Efeitos digitais, acabamento acetinado em várias cenas, uma fotografia única, som gravado fora de cena, trilha musical, etc., tudo o que não se espera de um filme de um dos líderes do DOGMA 95, ou pelas tintas brechtianas de seus últimos filmes.

Vemos que o luto é também culpa, que a culpa foi prazer, & que antes de prazer foi conhecimento adquirido no Éden, que se você quiser poderá ser onde Adão & Eva fizeram o que todos sabemos, envolvendo uma árvore, um figo ou uma maçã, & uma cobra. Mas é sobretudo um retiro bucólico com uma cabana, onde o casal protagonista ia relaxar com o filho. A revelação para a mulher (Charlotte Gainsbourg, extraordinária) se dá quando vai só com o filho, o que vemos em flashback, e ela tenta escrever a tese de doutorado sobre a caça às bruxas.



A seqüência de infortúnios (conhecimento, prazer, morbidez no prazer & culpa) não poderia ser mais cristã. Críticos ordinários disseram, sem vergonha de o dizer, que é um filme misógino. Não é. É um filme em que a natureza, sejam plantas & animais, ou os recônditos escuros da mente humana, trabalham incessantemente em vida, morte & em um lento processo de verdor & decadência. A ordem possível, artificial, se revela uma falsa segurança, postiça.

Von Trier anda perturbado (na verdade, sempre foi um tanto), & fez um exorcismo público nesse filme. A seqüência de abertura, em câmera lenta, pornografia, p/b, sem som & com a belíssima "Lascia ch'io pianga", do Rinaldo, de Händel, é algo inesquecível. O luto já vem anunciado na letra do libretto, na música que chora belamente.

A mulher é a nêmesis que, em conluio com a natureza imprevisível, vinga-se da ordem que levou às incontáveis caças às bruxas. É uma vingança suicida, claramente, porque tão cruel que precisa ser autodestrutiva. É irracional (tão irracional que se torna também tortuosa visão antecipadora no homem interpretado por Willem Defoe, que aceita a coisa como culpa, até que não aceita mais & toma seu turno de crueldade).

Não creio que verei esse filme duas vezes; mas era preciso ver ao menos uma.




Outro é Inglorious Basterds, de Quentin Tarantino (inspirado no filme de Enzo Castellari, de 1978, que, a propósito, não vi). Se dizemos "Tarantino", está implícita a violência, eu suponho, ao menos até aqui. Mas está implícito que será, por outro lado, muito engraçado, porque Tarantino propõe suas barbaridades como uma piada de humor negro.

Esse destacamento suicida de quase soldados & mais que soldados, que tinha o propósito inicial de matar nazis com rápidos ataques & estratégias brutais de tirar escalpo (entre outras coisas do mesmo naipe), se vê diante da possibilidade de exterminar o velho Adolf.

Tarantino cria algumas tramas paralelas que obviamente irão se ligar para um final apoteótico. Há muita sátira de gênero, citações que todo mundo ficou de olho para pegar, tudo o que sabemos que Tarantino faz. Precisa direção de atores (que nos EUA praticamente só ele & Woody Allen ainda sabem fazer).



Mas o curioso é, nesse caso também, a seqüência inicial: nela, Tarantino não tem pressa nenhuma, & isso é cruel. Há quem despreze o trabalho de câmera, achando que só repara nisso gente superciliosa, mas esse começo de filme é impressionante não apenas pelo trabalho de Christoph Waltz como Hans Landa (o que será impressionante por todo o filme), mas também pelo modo como Tarantino resolveu posicionar sua câmera, como ressaltou sons inquietantes— como quando o leite é servido a Landa — que chegam acausar certa repugnância auditiva, o que me lembrou os versos de som terrível, de Paul Celan em "Todesfuge", sobre aquele Schwarze Milch der Frühe que se bebe de manhã à tarde à noite: Wir trinken und trinken.

O filme é, por outro lado, muito engraçado, mas inquietante. Não a primeira cena, que nada tem de engraçada, & certamente tem mais do que de apenas inquietante. Tarantino faz, portanto, uma coisa inédita em sua obra até aqui, & faz como mestre.





District 9 foi oferecido como o que é: uma ficção meio científica que cria a hipótese de produzir uma metáfora simples, mas engenhosa, para não apenas o apartheid (a ação ficcional se passa em Johanesburgo, na África do Sul), mas também para a estrutura do preconceito & os efeitos de panela de pressão do preconceito em qqer sociedade.

É inteligente, filmado nesse novo método claustrofóbico em que os filmes recentes de zumbi se especializaram, isto é, imitando o estilo câmera na mão, meio documentário; os personagens usam gírias para menosprezar os ETs, que têm aparência de camarão, & por isso mesmo os humanos se recusam a ver neles mais do que animais, & potencialmente ameaçadores.

Nem mesmo as situações de sexualidade interracial deixam de ser abordadas. É claro que, dentro do esquema de roteiro redondo (ou previsível), é o ambígüo personagem que conhece os ETs como ninguém, & os despreza em quase igual medida, que sofrerá a transposição que irá testar seus limites existenciais, & pôr em questão a natureza odiosa do preconceito.


Há quem ache que o final sofre por tentar ser videogame: de fato, tenta a aproximação, mas a premissa realmente levaria a isso, & me parece aliás muito bem executado, & nem soa como algo mercadologicamente condicionado. É da própria narrativa; ou, ao menos, é como vejo.

Três filmes muito brutais, três enfoques muito diversos, mas igualmente apontando para um tipo de desespero social muito recente, uma desconfiança de que, de alguma forma, fomos devolvidos à lei do mais forte, ou daquele que tiver mais aptidões para a violência. É curioso, como visão, & por estar em todos.

A década de 1970 & a de 1980 tiveram sua descarga de violência. Lembro de Scarface (1983), com Al Pacino & Michelle Pfeiffer, por exemplo. Mas era não era uma violência existencial, era a história de tomar a violência contra a exclusão, & aquela coisa de quem vive pela espada, morre pela espada, que buscava um sentido trágico a se aplicar a novos personagens possuídos da velha hybris grega.

Agora é um desencanto de crueldade, um certo pavor do vazio. É curioso.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

UNE SEMAINE DE BONTÉ, ou a estratégia da desordem

Max Ernst, retratado por Man Ray

Une semaine de bonté (1934), de Max Ernst, é provavelmente um dos grandes romances modernos. Exceto pelo fato de que não é um romance, embora Ernst tenha tido o delicado gesto de o chamar roman logo na página de rosto.

A estratégia da desordem é mais ou menos a seguinte: sempre que alguma coisa que funciona perde suas características sensíveis & interpretativas (tornando-se mero tique mecânico) é plausível que apareça alguém sensato o suficiente para virar aquilo de cabeça para baixo.




É um romace visual, sans paroles. Ernst desenvolveu uma misteriosa narrativa parcialmente alegórica a partir da colagem de imagens de manuais e almanques ilustrados do século XIX & começo do século XX.

Como Hitchcock — pensando no trocadilho possível com uma cena memorável de Dial M for Murder —, também Ernst poderia ter dito que a melhor técnica é a da tesoura.

Seu romance brilhante, portanto, não é um romance, mas uma seqüência de imagens sugestivas num sentido arquetípico de associações entre as coisas, & também uma paródia que leva a situações deliberadamente extremas & absurdas a completa medianidade das ilustrações originais.

Se por um lado a estratégia da desordem é sempre uma cortina de fumaça para um propósito estudadíssimo sob a aparência de confusão, a hipótese de leitura passa também a ser a de que, condicionado pela suspeita informação de que se trata de um romance, qual o efeito que isso terá sobre o leitor, ou: a que será levado o leitor, e o que deverá supor nessas imagens de sonho & pesadelo que se encaixe na improvável proposta?

É também uma notória crítica ao romance, porque as imagens originais, e mesmo as extraordinárias loucuras resultantes, são sugestivas do tema do adultério: é um casal furtivo, quase sempre, sonhos eróticos difíceis de precisar, e como que a permanente violência de um duelo de honra, o que acusa de imediato a procedência burguesa da forma romanesca.


Lençóis no sonho que se tornam um mar; ou a mulher beijada por uma ave de rapina com asas dracônias de couro, como dos anjos imperfeitos do Paradise Lost, de John Milton (mesmo porque Ernst utiliza, nessa parte, várias ironias visuais com os conceitos cristãos de culpa, perdão, punição, que adiante se transformam claramente em sadomasoquismo), mas numa cena de classe média, onde apenas o vultuoso par de asas o denuncia — notar a contribuição da bengala, no contexto, que sai sob o casaco como uma cauda —, como analogamente vemos naquelas pinturas de gênero holandesas, no século XVII, o sedutor dando de beber (algo certamente alcoólico) a uma mocinha desavisada — ou avisadíssima, que usa o mecanismo como subterfúgio para seus próprios objetivos.


E não é apenas isso: Ernst propõe um animal (o dragão, o leão, o pássaro, ou a peculiar intromissão dos moai da Ilha da Páscoa, esses últimos perturbados, violadores, vaidosos) & um elemento para cada dia da semaine, sugerindo um temperamento para cada série de cenas, condicionadas então por essas características que desempenham papel narrativo. O elemento da água, no segundo dia, claramente representa a força superior da libido & o sexo feminino, numa fluidez que arrasta de modo muito cômico os homens, náufragos do desejo em um sonho erótico.

Ou emprega também a metáfora ornitológica que lhe é polimorfa, pois sabemos que era como Ernst via a si mesmo em termos animais, & que no livro desempenha em muitos pontos a imagem do amante, com associações sexuais com as idéias de fantasia, vôo, fuga, imprevisibilidade, obsessão, etc., assim como muitas vezes o leão desempenha a parte do poder, do desejo de controle, da honra ferida, da vingança.


Mas isso é apenas uma rápida visão parcial do complexo jogo do livro, obviamente.

Como as melhores obras de qualquer tempo, as obras modernas nos pedem um determinado ângulo de inclinação para que sejamos capazes de compreender aquilo que oferecem como percepção captada do modo organizado que reconhecemos como arte.

O livro termina com três poèmes visibles, isto é, poemas feitos para os olhos, em que as imagens, como na poesia visual posterior de Joan Brossa, por exemplo (boa parte dela incorpora também a colagem), são organizadas do mesmo modo que num poema de Paul Éluard (aliás, mencionado em epígrafe): as coisas se misturam, para evitar o recurso casual da mente aos sentidos com os quais já está acostumada.

(Nisso muitos modernos, mesmo de orientações praticamente opostas, se assemelharam: Gertrude Stein, por exemplo, escreveria a maior parte do tempo produzindo deslocamentos, fossem sintáticos, fossem de atribuição, ou de estrutura textual).

Nos poemas visíveis (já que poemas feitos de palavras são invisíveis, excluindo-se a technopaegnia grega & os calligrammes de Apollinaire), Ernst faz uso do fato de que o método por trás do mito é o mesmo que gerou proverbialmente os poemas & os sonhos, & questionaria a própria visibilidade: somos realmente capazes de ver algo que escapa à nossa compreensão?

Ou vemos o que queremos? Visível & invisível se sucedem como possibilidades de leitura do mistério, que é um sonho, um mito, um poema, ou um romance.