segunda-feira, 23 de março de 2009

RELENDO CARPEAUX

Otto Maria Carpeaux, austríaco de nascimento, no Rio de Janeiro, em 1968.


Conheço pessoas verdadeiramente inteligentes que têm apreço pela leitura sociológica da literatura; essa é a leitura mais comum no Brasil, hoje, em universidades & no extremamente exíguo nicho de leitores do nosso país de dimensões continentais, como é costume dizer.

Acho que aquelas pessoas inteligentes, na verdade, ainda não foram expostas a outras coisas, talvez pelo motivo de que há esse imobilismo auto-satisfeito num meio literário tão pequeno & de tão poucas ambições.

Não digo "crítica sociológica" porque nada tem de crítica. Crítica, da raiz grega, significa discernir, & os sociólogos não fazem isso: a literatura é a ilustração de um processo social, para esses leitores. Assim na Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, nos dois livros sobre Machado de Assis, de Roberto Schwarz, por exemplo.

Quando escolhem, quando praticam o grego discernimento, costumam errar: Candido errou com Sousândrade & Odorico Mendes (Gregório de Matos é um erro do método que aplicou, & não um erro dele, lui-même, Candido), Schwarz não percebe Machado de Assis além dos limites de suas idéias sobre a sociedade carioca do período, não o vê formalmente (seu capítulo sobre forma em Machado é curiosamente vazio de questões formais). Criticou mal um poema ótimo de Augusto de Campos, com o qual não se familiarizara: revelou-se que era questão ideológica, de política cultural, apenas.

A sociologia aplicada à literatura é um dos motivos de ser tão difícil encontrar quem saiba ler forma, intersecções entre as obras dos autores, as fontes, & mais difícil ainda encontrar quem saiba diferenciar as coisas qualitativamente (arrepiam-se todos ao som da palavra "qualidade"). Enfim, quem saiba efetivamente ler como crítico. Os jornais desistiram, a universidade em geral quer apenas Weltanschauung & alguma teoria, escritores dão seus palpites, and so on.

Isso tudo é para introduzir o assunto, minhas recentes releituras dos ensaios de Otto Maria Carpeaux. Não, isso não se deu por adquirir os dois imensos & recentes volumes da Topbooks, que teriam arruinado o parco orçamento deste poeta: consegui, num sebo, os Vinte e Cinco Anos de Literatura, coletânea publicada pela Civilização Brasileira, em 1968, de preço muitíssimo mais modesto.

Lamento que a memória brasileira seja proverbialmente tão curta.

Esse austríaco que veio para cá fugido do nazismo era um dos homens mais cultos de que tenho notícia, leitor de habilidades comparativas únicas, também porque possuía uma memória como a daqueles antigos mestres de retórica que guardavam tudo na cabeça com uma poderosa & quase mística ars memoriae.

Não apenas: era a nossa versão de Montaigne, que ele amava. A arte de sua escrita não raro nos comove no meio de um ensaio, & nos perguntamos como, já que trata-se de literatura crítica. Escreveu nesta língua portuguesa com frases velozes & certeiras, a velocidade de uma mente que produzia sínteses o tempo todo ao se mover sobre um assunto. Não conheço texto crítico em português dotado de tanta energia, redigido com tanta arte & fineza.

Seu humor estava sempre presente, sofisticado, &, por vezes, ácido. Seus ensaios cobrem um universo de livros espantosamente amplo, & com observações sempre específicas. Aqui ele lê Vico, Casanova, Machado de Assis (numa audaciosa aproximação com a prosa filosófica de Leopardi), repassa Dante Alighieri através de suas leituras desde garoto, espeta Aldous Huxley, espinafra as idiotices de Mendes dos Remédios, comenta Kafka, Bach, Lorca, Utrillo, Jacobsen, etc. Até um saboroso ensaio sobre Gioachino Belli, "Roma Sotteranea". Conheço apenas um crítico tão variadamente culto hoje no Brasil. Nenhum que o ultrapasse.

Carpeaux é um tesouro que exploramos mal. Somos muito ingratos trocando o acervo brilhante de suas agudas percepções, que foram um verdadeiro presente, por outros autores que se pegam em questiúnculas bacanas para seminários acadêmicos & para a Flip, & nada mais. Substância crítica se encontra na obra de Carpeaux.

Abaixo, uma breve coleção de aperitivos para aqueles que quiserem mais tarde fazer a refeição completa:
De "Vico Vivo" (1941)

Se os contemporâneos houvessem compreendido Vico, nenhum dos partidos em luta teria ficado satisfeito. Vico poderia dizer, com Valéry: Je ne suis ni de droite ni de gauche. Num tempo em que a gente é interrogada, em cada esquina, sobre a que partido pertence, Vico teria tido a coragem de passar sem ouvir a pergunta. Não teria temido o campo de concentração, pois já estava dentro dele, nem o ostracismo, já que o espírito superior o merece. Passaria por um pessimista excessivo, porque esperava auroras que ainda não resplandeceram. Submerge-se num passado que se foi, e num futuro que está por vir, pois compreende mais profundamente do que os outros o presente.

De "Uma Fonte da Filosofia de Machado de Assis"

Em Leopardi também se encontra o motivo que sugere a impressão de cepticismo ao leitor de Machado de Assis. Como materialistas epicureus, o erudito grecista Leopardi e o "mulato grego" Machado seriam "pagãos"; mas na verdade não podem existir pagãos depois do advento do cristianismo. Fica, até nos anticristãos, o estímulo da inquietação espiritual, do "cepticismo" pascaliano. Machado foi leitor de Pascal, Leopardi também foi leitor de Pascal (...) Mas por serem pascalianos, ainda não eram cristãos: Leopardi consolava-se com a "morte eterna" ("a matéria liberta para sempre da alma extinta", diz o nosso poeta), e o outro com o pensamento de não ter transmitido " a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".

De "Baudelaire e a Liberdade"

Baudelaire é poeta; e "os poetas mentem muito", dizia Platão. Qualquer que seja o verdadeiro sentido da expressão misteriosa do filósofo, está certo que hoje se admitem mentiras de todas as espécies, menos as mentiras dos poetas. Todos os campos ideológicos fazem os maiores esforços para obrigar os poetas a dizer a Verdade (...) Se o poeta se recusa a isso, a sua poesia fica estigmatizada como passatempo frívolo e até perigoso. Ninguém teria respondido a essa acusação com desprezo maior que Baudelaire, ou antes respondeu realmente: Quand on définit les droits de l'homme, on oubliait deux droits importants: le droit de se contredire, et le droit de s'en aller.

De "A Erudição do Professor Mendes"

Escolha tão judiciosa dos nomes essenciais chega às vezes a comprometer o sentido das próprias apreciações do Prof. Mendes. À literatura inglesa do Século XVIII o erudito dá a nota "é de esplendor"; mas por que "esplendor" se o historiador deslumbrado riscou os nomes de Burns, Blake, Fielding e Sterne? Outra vez, as omissões servem para justificar uma atitude: depois de ignorar Donne, George Herbert, Ben Jonson, Webster, e Marvell é mais fácil falar de "decadência" e "mau gosto" do maior dos séculos da história literária inglesa, o XVII.

De "O Outro Casanova"

O palco dessa história é a Veneza da época de Goldoni: paixão pela comédia e pela ópera em teatros feèricamente iluminados de velas, os salões de jogo do Ridotto, os espiões e delatores do terrível Conselho dos Dez, os palácios e os canais, as máscaras, o carnaval e o minueto, os ritos bizantinos da Sereníssima República e o ateísmo de Enciclopedistas afrancesados. Eis a Veneza de Casanova, mas o palco da sua vida é a Europa inteira, na última época em que o estilo da vida era o mesmo em todos os países, de Madri até Petersburgo (...)

É a época de Mozart. É um século, sem dúvida, de terríveis injustiças sociais e de muita sujeira moral e física. Também é a última época em que a Europa teve um estilo completo: no savoir vivre e na indumentária, nos móveis e na cozinha, nas artes e no amor. O último estilo internacional, europeu. O Laclos das Liaisons dangereuses ainda tem esse estilo, do qual um reflexo sobreviverá na Chartreuse de Parme.

De "A Erudição de Mr. Huxley"

Alguns leitores do meu livro Presenças escandalizaram-se com a irreverência com que eu tinha tratado a mundialmente famosa erudição do romancista Aldous Huxley. Como foi? Aldous Huxley - cuja leitura preferida é, conforme sua própria confissão, a Encyclopaedia Britannica - respondeu a uma enquête, dizendo alguma coisa sobre a bondade como fundamento da poesia e afirmando que um criminoso não pode ser bom poeta. Acontece que François Villon, considerado por muitos, e com boas razões, como o maior poeta de língua francesa, foi vagabundo, escroque, sacrílego e assassino. Concluí que Aldous Huxley ainda não tinha chegado, na leitura de seu livro preferido, até o volume XXIII, verbete Villon.

De "Alexandria ou a Inteligência"

Fala-se em pastiche. Mas desde quando se usa esse termo pejorativo? Exatamente desde o Século XVIII, quando venceu a nossa teoria estética da originalidade que atribui a gênese das obras de arte à misteriosa inspiração do poeta. Inspirado por quem?

Que é que essa teoria exige? Exige que o poeta aproveite, para fazer seu poema, exclusivamente suas emoções, os movimentos de seu coração. Mas por que não poderá ele aproveitar, igualmente, o que ele sabe, isto é, os movimentos de sua inteligência?

A resposta só pode ser positiva: a inteligência tem os mesmos direitos da emoção. Falta de originalidade? Não importa o material. Importa o que o artista sabe fazer do seu material.

domingo, 22 de março de 2009

RADIOHEAD IN TOWN



A banda de Thom Yorke & Jonny Greenwood fez ou está fazendo shows em São Paulo, & é, como vocês bem sabem, a melhor banda de rock dos últimos dez anos.

Quando leio na Rolling Stone que o U2, que aparece na capa fazendo uma pose de bacana, quer transformar o rock, acontece que começo a rir: está além deles transformar qualquer coisa, começando pela própria música mole que têm tocado.

E a transformação já ocorreu & sequer pôde ser avaliada: o Radiohead, misturando música eletrônica, jazz, rock & mais umas tantas coisas diferentes, operou a mudança mais completa que o rock já sofreu.

E para bem, que era um gênero quase morto (os grunges deram uma força inicial, se lembramos que no Pablo Honey o Radiohead ainda imitava aquele estilo calmaria-barulho-calmaria do Nirvana, que imitava, por sua vez, os Pixies).

Não fui vê-los, que não sou o man of the crowd de Edgar Allan Poe, mas traduzi para a Modo de Usar, em 2007, "fitter happier", do emblemático álbum no já distante ano de 1997, Ok Computer, como uma homenagem a Yorke & ses amis.

Sim, aquela máquina falando coisas monótonas da vida maquinal das pessoas. E sim, há aquelas pessoas que reclamam das idéias funestas das habilíssimas letras do Radiohead.

Essas pessoas têm um estranho senso de humor. Ou a falta de. Ou alguma coisa assim.

DOCE ALENTO TRAZ O AR

Peire Vidal, em miniatura dentro de uma capitular, da Bibliothèque Nationale de Paris.


Talvez o mais vasto anedotário a respeito dos trovadores da Provença recaia sobre um único nome: Peire Vidal. E assim se diz que se fez passar por lobo para cortejar uma dama chamada Loba; que se casou com uma grega, neta do imperador de Constantinopla, e se fez chamar imperador; que teve a língua decepada pelo ciúme de um barão de quem cortejava a esposa; que roubou um beijo a uma outra dama enquanto ela dormia, tendo se inserido secretamente em seu quarto, etc.

Suas extravagâncias nos chegam através das vidas e razós, nas quais se dá notícia do poeta e do poema, respectivamente. Esses textos em prosa foram escritos entre o século XIII e o XIV — isto é, um ou dois séculos depois da morte do poeta — e interessam não só pelo aspecto informativo muitas vezes duvidoso, mas pelo estilo que guarda um sabor, ou, se se preferir, um espírito de época. Um trovador como Uc de Sant Circ ficou conhecido por também escrever vidas, recolhendo parte da cultura da languedoc sob o nome de Uc Faidit (Hugo, o Exilado. Presume-se que se trate do mesmo por causa do “desterro” de Sant Circ na Itália), no Donatz Proensals, um tratado de gramática e versificação bem mais amplo que o galego-português Arte de Trovar.

Mais tarde esses textos biográficos foram reescritos em francês por Jean de Nostredame, menos famoso que, mas tão mentiroso quanto, seu irmão, o autor das arcanas Centúrias.

Documentos daquela data, escritos em latim, nos falam de um tal Petrus Vitalis, que dificilmente reconheceríamos como sendo o trovador, porque, como diz Martín de Riquer, não se trata de um nome lá muito peculiar, o de Peire Vidal. De qualquer modo, uma das menções diz que Petrus Vitalis seria um mercador de peles, o que excita a imaginação dos provençalistas, uma vez que a vida começa dizendo

Peire Vidals si fo de Tolosa. Fils fo d'un pelicer.
(Peire Vidal foi de Toulouse. Foi filho de um peleiro.)

Peleiro, ou peleteiro é aquele que prepara ou comercia peles. Enfim.

Vidal reclama para si uma arte impecável e sua vida atesta que lhe vinham os cantares com grande facilidade, para o que ainda se suspeita de seu caráter ajogralado, seu talento para improvisação, mais ou menos sugerido também por ele vir de classe baixa — e tal era a origem da maioria dos jograis. Sua ironia contra o trobar ric nos apresenta Vidal, que

Ajostar
e lassar
sai tan gent motz e so,
que del car
e ric trobar
no·m ven hom al talo

(Ajustar /e laçar/as palavras sei tanto,/ que alcançar,/ rico trovar,/ não me pode no canto)

Traduzo, abaixo, com uma ou outra adaptação, sua bela canção "Ab l'alen tir vas me l'aire".


DOCE ALENTO TRAZ O AR

I

Doce alento traz o ar
que eu sinto vir da Provença;
pois minha alegria adensa
se alguém a vem cantar,
e eu sorrio contente
e peço que vá em frente:
tanto me agrada lembrar.

II

E há mais doce lugar
que de Rozer até Vensa,
que encerre o mar e Durensa
nessa alegria sem par?
Pois deixei com a franca gente
o meu coração que sente;
sempre sabem me animar.

III

E não pode haver mal-estar
pois lembrar dela compensa,
sim, ela tem graça imensa.
E quem a venha louvar,
Por mais que diga não mente;
que é a melhor, mais decente,
gentil, que se pode amar .

IV

O que sei fazer, cantar,
grato a ela, que a extensa
arte me deu de quem pensa,
canta e sabe se alegrar.
Tudo de bem, conseqüente,
me vem de seu corpo quente,
mesmo no sono a sonhar.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Nicola Antonio Porpora (1686-1768)


Retrato anônimo de Nicola Antonio Porpora no Museo Internazionale e biblioteca della musica, em Bolonha.


Parte daquilo que é bom no século XVIII, Nicola Antonio Porpora morreu na miséria. É mais famoso por ter sido professor de Farinelli, o notório castratto, já cinebiografado.

Músico extraordinário, & um dos mais brilhantes compositores de obras musicais para a voz, escrevia com impressionante variedade dramática para o canto. Alguns dirão que suas obras não têm peso, que a disputa com Haendel lhe punha em vergonhoso desfavor.

Não é verdade. Suas obras não pesam, & eu devo agradecer aos céus que o Notturno per i defunti seja uma peça que quase não pareça algo solene, mas transpire agilidade & graça inefáveis. É característica de sua mão essa graça, esse colorido que não exaurem jamais a audição, que parecem jamais se repetir, que vão acumulando prazer em prazer na audição.

Foi um trabalho de amor o que levou à reunião desses textos musicais numa edição (do aliás belo catálogo da Fuga Libera) que respeita seu autor, mesmo onde o documento é falho & exige a reconstrução hipotética dessa obra escrita pelo napolitano em Veneza, & que é tão veneziana quanto o texto em francês da Histoire de ma vie, de Giacomo Casanova.

A elegância ligeira de seu estilo é doce & educada, & tem algo daquela cidade de água, & daquele século da miniatura, como na pintura de Watteau, ou no retrato sutilmente erótico da dama com chapéu branco, de Jean-Baptiste Greuze.

Nos últimos anos, Porpora vem sendo aos poucos redescoberto. É uma justiça bastante tardia, mas, não obstante, justiça.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Um poema de Ardengo Soffici (1879-1964)

Natura morta con uovo rosso (1914), tela de Ardengo Soffici, futurista semi-tardio e polêmico.



ENCRUZILHADA

Dissolver-se no pó de arroz do fim de tarde *
Com o imprevisto clamor da eletricidade do gás do acetileno e das outras luzes
Floridas na vitrine
Nas janelas e no aeroplano do firmamento
Os calçados que arrastam gotas de diamantes e de ouro ao longo das calçadas primaveris
Como as bocas e os olhos
De todas essas mulheres loucas de histeria solitária
Os automóveis que vêm de toda parte
Os vagões reais e linhas de bonde pipilando como
[pássaros metralhados

Nous n’avons plus d’amour que pour nous-mêmes enfin

“É proibido falar com o motorista”
Oh nadar como um peixe enamorado que bebe esmeraldas
Em meio a esta rede de perfumes e fogos de artifício!

de Bif& ZF + 18 = Simultaneità - Chimismi lirici, Florença, 1915.

*no original, ordinotte (etimologicamente or di notte), o dobre do sino do começo da noite, que anuncia o fim do dia de trabalho.

É diferente

Fabiana Faleiros, com óculos escuros, dentro de um fusca.


Há coisas excelentes da liberdade que estão – deus seja louvado- muito longe do tipo de ficção romântica sobre o assunto. De modo que alguém precisa dizer (estou fazendo isso): a liberdade não é um produto de extração romântica.

Sou daquelas pessoas que acham que boa parte do que presta no modernismo é anti-romântico. E a liberdade em arte é a famosa faca de dois gumes. Sobre isso há uma coisa curiosa dita por Lawrence Ferlinghetti (ótimo poeta beat bestseller e dono da livraria City Lights, de San Francisco) em entrevista a Rodrigo Garcia Lopes.

Ele falou sobre Allen Ginsberg, seu amigo, que teria dito: “primeira idéia, melhor idéia”, e comenta que no caso de Ginsberg, que tem uma mente peculiar e interessante, de fato a primeira idéia com freqüência é uma idéia excelente, mas que os imitadores desse processo acabam escrevendo umas coisas inanes e banais.

Fiz esse excurso para chegar a uma afirmação minha, a de que a mente, ou o modo poético de Fabiana Faleiros pensar, é muito interessante, e muito livre. Livre de condicionamentos literários - e longe de mim o dizer que os condicionamentos literários sejam, por definição, algo ruim.

Mas é por outro lado muito estimulante ler uma obra não apenas livre disso, mas começando a se construir com uma leveza de toque que nos induz a pensar que a poesia recomeça de um tipo de marco zero, com tudo o que isso implica.

O primeiro livro que publicou foi um belo livro sem título, artesanal, com cópias distribuídas a conhecidos, e que, por essa sorte, caiu em minhas mãos. Há ensaio de poesia lá, e acho mesmo que a autora tem restrições atuais a alguns textos do pequeno volume (há um monte de poemas novos dela em seu peculiaríssimo blog Virando Azeite, link para o qual os gentis leitores encontram aí do lado, em "Let us go and make our visit").

Não obstante isso, flagra-se nele justamente um frescor de olhos novos sobre as coisas, um belo sem-cerimônia que aborda a linguagem por ângulos inesperados, por vezes forçando-a quase além dos limites, em que se percebe a tentativa de dizer algo ainda sem código. Essa ousadia não-programática se dá sobretudo com a sintaxe.

Vou citar um poema bastante diverso do que F.F. tem escrito ultimamente (seu “método”, por assim dizer, se sutilizou), mas com certas virtudes extremas, e portanto mais fáceis de visualizar num uso extremo. É este:

Nós, no raro café, sempre nos sentávamos numa mesa onde na qual existia
outra por baixo da mesma onde nos deitávamos e começávamos a conversar.
Muito embora houvesse entre a gente um cano que mantinha mesa de cima
pendente era nossa estratégia de me aproximar. Havia um buraco onde o café
passado a vácuo era colocado para nos banhar. O garçom já cansado servido
do café cheiroso na gente e eu nem dizia, ai tá muito quente, e as feridas nasceram
dormentes. Queres levantar? Nessa pergunta se decide passar açúcar e começa
a me coçar. Raspa este elemento acessório que faz parte de todo empório:
"Forneço gosto mas não sou a coisa em si. How do you know me?"
Se a minha brancura associada a espessura da tua pele te repele te repele.
Se queres ser um adoçante. Se queres atingir a forma que retorna sem ser
mero acompanhante. Passe café por mim.


Escrevi “anárquica” porque estamos francamente fora de um esquema de ordem prefixada, embora tecnicamente se possa aproximar o poema da mais radical collage cubista - que recorta da composição o tempo percebido então como simultaneidade sensível - ou dos métodos de deslocamento referencial dos dadaístas. Gertrude Stein, também, no que concerne a umas coisas não se corresponderem sintaticamente, ou repetirem-se.

Mas não é exatamente isso. Me parece o princípio de alguma coisa, mais do que a reelaboração consciente de algo prévio, até porque a técnica não se repete no livro, que até essa ligeireza se permite: seu foco está constantemente em mudança, e o que serve para um poema não serve para outro.

Nos poemas, as vozes que falam parecem ter um atraso, como as respostas dos personagens uns para os outros num dos filmes de sonho (e pesadelo) de David Lynch. O deslocamento, que se sente pelo uso de orações que não se complementam, mas muitas vezes reverberam, representa com propriedade o incomum dessa percepção. E é o que importa.

E daí, uma límpida definição:

um dia eu olhei para a cidade e disse:
eu vou ganhar essa cidade

o que é diferente de dizer:
essa cidade vai ser minha


Poesia; ou, é diferente.

domingo, 8 de março de 2009

quinta-feira, 5 de março de 2009

O Deus Selvagem: 100 anos de vanguardas modernas

Os futuristas desfilam a última moda em Milão: Marinetti & Rossolo, Carrà, etc.

O Manifesto del Futurismo fez 100 anos no dia 20 de fevereiro, e se tornou vintage: os cartazes desafiadores são peças famosas de design & a velocidade de seus aeroplanos & automóveis, com que se entusiasmavam tanto, é hoje insignificante.

A rebelião futurista com os museus levou algumas das peças magníficas de artistas futuristas, como Umberto Boccioni, justamente aos museus: podemos apreciar tranqüilamente sua célebre Forme uniche della continuità nello spazio, de 1913, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo, por exemplo.

O período das vanguardas, que chegou a um século inteiro agora, foi a resposta à pergunta que William Butler Yeats formulou em carta, em 1896, após assistir à ultrajante (na época) estréia do louco Ubu Roi, de Alfred Jarry: What more is possible? After us the Savage God.

É uma coisa curiosa para se pensar sobre o modernismo, & sobretudo esse chamar uma coisa moderna e pôr um ismo no final: maquinário velho é sucata, & o deslumbramento de Marinetti & mais uma pilha de artistas que embarcaram nessa é hoje visto com escárnio ou cortês piedade.

Mesmo Yeats, que achou, na época do Ubu Roi, que lá estava o beco-sem-saída da arte, assistiu às vanguardas que barbarizaram sua idéia de “deus selvagem”. E nós já vimos mais coisas depois de tudo isso.

As pessoas andam ansiosas por pôr um ponto final na História — uma atitude, digamos, meio bélica — há mais de um século, como se vê: mas ela prossegue. O nome agora é pós-moderno, cujo emblema deverá ser um cachorro rodopiando a tentar morder o rabo. Ou uma animação de Marinetti tentando morder a ponta de seus longos bigodões.

Há algo para pensarmos que ainda não foi pensado, & isso desde que as vanguardas inventaram o século XX. O que as vanguardas significaram, & como ver o mundo depois delas, sem negá-las nem repeti-las irrefletidamente, ainda é a questão.

Não obstante, meus parachoques aos futuristas & seu centenário, especialmente a Boccioni e aquele semi-futurista, Ardengo Soffici, que escreveu ótimos poemas. E a Marinetti, autor de ótimas idéias para manifestos.