segunda-feira, 29 de março de 2010

CAVALCANTI NA MODO DE USAR


A revista Modo de Usar, versão digital, começou a publicar uma série de artigos, de poetas & críticos brasileiros contemporâneos (como Eduardo Sterzi, Érico Nogueira & Rodrigo Lobo Damasceno) sobre a poesia do florentino Guido Cavalcanti (c.1250-1300).

O ciclo começou com a postagem do meu artigo "Cavalcanti: vulgaris excellentiam", aqui:


A propósito, há uma coisa engraçada, desimportante, mas que me parece interessante partilhar. Trabalhei com a obra de Ezra Pound durante alguns anos & tive a oportunidade de conhecer, inclusive, a surpreendente música que o poeta escreveu algumas vezes.

Uma dessas foi a ópera inacabada Cavalcanti (1933). Um trecho do final, em que Pound musica belamente a balada "Perch'io non spero di tornar giammai", é introduzido com um pequeno diálogo dramático entre Guido Cavalcanti & seu pajem, Ricco, um garoto de sua família.

Cavalcanti está já desterrado, & Pound trabalha com a hipótese de haver um código na balada, para seus amigos em Florença. Cavalcanti não voltará à cidade, mas ensina o garoto a cantar o poema, pois ele irá levá-lo a cidade em seus lábios.

O trecho dramático é muito curioso, porque Pound escreve as falas de Cavalcanti dotando-o de sua persona nervosa, de humor peculiaríssimo. O texto é como segue abaixo, no original & na minha tradução para a comodidade dos leitores, & foi estampado no livreto que acompanha o CD de gravações da música poundiana, EGO SCRIPTOR CANTILENAE: THE MUSIC OF EZRA POUND, da Other Minds Ensemble, sob direção de Robert Hughes.

Nesse intróito, o garoto canta a primeira linha da balada trocando o “g” pelo “z” em giammai: Perch’io non spero di tornar ziammai. E Guido:

DON’T BUZZ UP YOUR ZEES. Don’t pronounce a gee like a zee. Jheeezus! A man spends half a lifetime trying to shine up the language, and his own page in his own family pronounces it like a butcher!

(NÃO FIQUE ZUNINDO COM OS SEUS ZÊS. Não pronuncie um g como um z. Jesuuus! Um sujeito passa meia vida tentando polir a linguagem e seu próprio pajem de sua própria família pronuncia a coisa como um açougueiro!)

O trecho é interessante também porque Pound está assinalando, nesse tom casual & avacalhado da conversa, aquela hipótese da língua mais suave, a dulciori loquela (o dolce stil nuovo se pensa assim)de que Dante Alighieri fala no De Vulgari Eloquentia, sobretudo quando repudia a variedade siciliana da língua, com exemplo do belo contrasto de Cielo D'Alcamo, no qual lemos esses casos de zunidos.

Era isso. Estejam atentos também às demais postagens na Modo de Usar, deverá ser um ótimo ciclo de artigos.

sábado, 27 de março de 2010

Arte, imaginação, imodéstia

O laço dela obrigava a pessoa a dizer a verdade, o que podia ser constrangedor.

Ricardo Domeneck postou um texto muito interessante sobre questões de função da obra de arte na sociedade em que se vive (a urgência de se reconsiderar DADA, por exemplo), & questões de gênero — não o gênero literário, mas gender — que ultrapassariam a mera questão de gênero, isto é, menos a consideração da condição sexual dos autores das obras, & mais o sentido que isso tomaria em obras relevantes.

Deve-se ler até porque a questão de gender não costuma ser proposta com o bom-senso que Domeneck emprega lá.

Em geral a história de gender veio lavando, em algumas décadas, as mentes de muitos departamentos de Literatura em universidades di tutto il mondo, & é uma das coisas que tornaram a crítica literária um traço, escrava do politicamente correto. Fez elevar nulidades a wits, porque decorosamente dentro do receituário politicamente correto das revisões literárias.

Mas este texto aqui é claramente outra coisa. Leiam:


http://ricardo-domeneck.blogspot.com/2010/03/contexto-uterino-ou-sambando-com.html

Domeneck oportunamente lembra uma conversa muy divertida que tivemos há algum tempo, sobre uma obra de Lenka Clayton, o vídeo “Qaeda, quality, question, quickly, quickly, quiet”, um vídeocomentário engenhoso ao então presidente do mundo, George Bush, com o que demonstrava o mecanismo repetitivo, lavagem mental, de seus discursos mecânicos, & a pesada ideologia mal disfarçada em seu vocabulário assaz restrito.

Domeneck lembra de eu lhe dizer que, em 1000 anos, qdo. Bushinho Jr. for uma nota de rodapé na vasta História da Infâmia Universal (o certo seria dizer, "em 5 anos"), o vídeo de Clayton não terá mais sentido, & argumenta que isso é discutível nos termos de que um artista futuramente poderá ter Clayton como uma possibilidade de recurso expressivo contra coisas assemelhadas.

O que quis dizer então é que, muito menos pelo tema de Clayton ser o Georgie, ou, numa sinédoque, sua condição de notória imbecilidade & o veneno que foi o seu governo — não criticaria o ataque dela a isso, ou estaria louco ao fazê-lo, porque ao menos uns três dos meus poemas de Icterofagia miravam em Bush, também — & mais pelo fato de que a obra de Clayton é um comentário, é que não terá sentido.

Uma obra pode atacar costumes empedernidos; uma obra pode fazer o que bem entender, mas o fato que permanece é que uma obra deve ficar em pé por si, como obra.

Clayton dá muito destaque à persona de Bush, seu recurso é a edição; se baseia na repetição da óbvia estupidez recalcitrante em que mira. Como um comentário localizado, feito de ironia, é exato: é como uma charge política do jornal de ontem, que tem aplicação & efeito imediatos, & que apenas vemos num futuro próximo se o desenhista for bom, ou como registro histórico. Existe em seu vínculo temporal & político, mas está circunscrito a ele.

A diferença para o poema de Mandelshtam, bem lembrado por Domeneck, & o porquê de ainda o lermos com interesse depois de Stálin bater suas botas, é muito simples: lemos a habilidade poeticamente imaginativa de Mandelshtam & sua raiva calculada na palavra, sua percepção anotando cada detalhe revelador, figurando Stálin como monstro desproporcional (na analogia de sua perversidade ser oposta a qqer harmonia), mas são coisas que se abrem para qqer situação de tirania, também.

Escrever que Stálin forja decretos como sapatos, ou notar seus imensos bigodes de barata, os dedos gordos, & o finale de pura percepção, que diz da felicidade de Stálin como a de um “georgiano mastigando uma framboesa” ao ter mais uma vítima, assinala não apenas aquele ditador em específico, mas um núcleo de perversidade encontrada em muitos lugares & tempos, amplia nossa percepção, associa a crueldade diretamente ao prazer, & vemos uma sangria no fruto arroxeado em impiedosa mastigação.

Não falo do verso em que foi escrito porque, hélas, não leio russo.

Temos Mandelshtam desenvolvendo imagens icônicas dessa perversidade com seu engenho ad hoc, que por isso não é meramente noticiário, mas uma arte, como todas, da percepção.

Pode-se repetir a seminal pergunta de Duchamp, aplicada ao caso: “Toda obra tem de ser obra de arte?” Não. Pode ser uma intervenção pontual que procura reparar desproporções, como me parece o caso. Entre o vídeo & o poema há diferenças de grau, de escopo, de habilidade perceptiva.

E disse a Domeneck, que talvez não tenha me acreditado na ocasião: qdo. Bush for a tal nota de rodapé, nós ainda seremos lidos. Nós, os atuais joões-ninguém? Yessir.

Por quê? aqueles ávidos por uma resposta eu encaminho aos últimos versos de Ovídio nas Metamorfoses, nos quais seu orgulho — que na época devia soar como incrível imodéstia — considerava que seria lido enquanto durasse o Império Romano.

Mas nós ainda o lemos, séculos depois de evaporar o Império Romano, para eventual surpresa do fantasma de Ovídio.

“Nós quem?”, perguntam os espertíssimos leitores deste passageiro blog. “Nós” qqer um que queira saber alguma coisa que preste. Ou ao menos nós, os imodestos.

PS: Linda Carter sabia se transformar, girando, sem ficar tonta. E resistia a uma explosão a cada vez. Não é pouco. E tinha um nome apropriado à pessoa, o que é curioso. E o Warhol não warholizou a Linda Carter? Se não, devia ter.

quarta-feira, 24 de março de 2010

BEIJA, REBEIJA-ME

Louise Labé (1524-1566)


Tendo meu ócio cheio de dignidade permanentemente perturbado por obrigações cumulativas, lá se vão os artigos. Melhor: direto aos poemas.

Louise Labé, dizem agora, pode ter sido uma invenção coletiva de poetas franceses da época. Se for, é também uma ironia, porque sua obra varre do mapa a maior parte das deles.

Se não for, ainda é aquela mulher de coragem & talento verbal soberbos, que Calvino, com suas peculiares simpatia & delicadeza, chamou plebeia meretrix. Como não seria meretriz aos olhos de quem não perdoava nem as virgens — ou a palavra grega certa pra isso seria parténos?

Enfim, como diz Doutor Fausto: Divinity, adieu.

Traduzi um dos poemas de Labé que mais aprecio, abaixo. Até mesmo Nick Cave prestou tributo (a seu modo) à poeta francesa, escrevendo no primeiro verso de "Green Eyes", do disco The Boatman's Call (1997): Kiss me again, rekiss me and kiss me.

Gaudete.

SONNET XVIII

Baise m'encor, rebaise moy et baise:
Donne m'en un de tes plus savoureus,
Donne m'en un de tes plus amoureus:
Je t'en rendray quatre plus chaus que braise.
Las, te pleins tu ? ça que ce mal j'apaise,
En t'en donnant dix autres doucereus.
Ainsi meslans nos baisers tant heureus
Jouissons nous l'un de l'autre à notre aise.
Lors double vie à chacun en suivra.
Chacun en soy et son ami vivra.
Permets m'Amour penser quelque folie:
Tousjours suis mal, vivant discrettement,
Et ne me puis donner contentement,
Si hors de moy ne fay quelque saillie.

SONETO XVIII

Beija, rebeija-me e torna a beijar:
Dá-me um daqueles teus mais saborosos,
Dá-me um daqueles teus mais amorosos:
Quatro eu te dou como brasa a queimar.
Queixas de mim? o teu mal vou sanar
Dando-te mais outros dez langorosos.
Assim mesclando tais beijos formosos,
Os dois gozemos o quanto bastar.
Vida dobrada teremos, amigo:
Um tem a si, mais o outro consigo.
Permite, Amor, sonhar tanta sandice:
Seria mau, viver discretamente,
Sequer teria um momento contente,
Se de mim mesma àsvezes não saísse.


* com um agradecimento a Eric Ponty, ainda devendo-lhe uma diérese. ahahahaha.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Deus Priapo mentulatior non est

Detalhe do quadro de Nicolas Poussin, Himeneu travestido assistindo a uma dança em honra a Príapo (c.1638), restaurado & exposto no MASP


Ninguém conseguia ver. O quê? Um detalhe muito importante: o pênis ereto & colossal da estátua de Príapo no grande quadro de Poussin, do acervo permanente do MASP.

Restaurado por brasileiros (sobretudo Regina Costa Pinto Moreira, que trabalha na França) & franceses, aí está, acima, como ficou a parte central antes da reparação completa. As cores, além do mais — como quando há a retirada das históricas camadas escuras de verniz & sujeira —, agora brilham.

Poussin se dedicou a temas semelhantes em seu quadro do Triunfo de Pã & em outro Bacanal, mas, por sorte nossa, a tela do MASP é também extraordinária, uma composição em que o caráter central do deus esculpido & o ritmo fluente & proporcional das duas partes em que a tela se vê dividida tornam o quadro especialmente harmonioso & hipnótico.

Assim, E. H. Gombrich anota seu nome simplesmente como Dance of the Nymphs [A Dança das Ninfas], no ensaio "Reynolds's Theory and Practice of Imitation: Three Ladies Adorning a Term of Hymen", parte de seu ótimo livro Norm and Form, de 1966.

Himeneu é o deus romano do casamento, & aparece emblematicamente cantado no poema LXII de Catulo. Gombrich discute, no ensaio, as raízes iconográficas que ligam o Himeneu ao mais, digamos, "rústico" Príapo. E o decoro aplicado à circunstância, na invenção do pintor.

Joshua Reynolds (um daqueles tediosos pintores ingleses do século XVIII) pintou uma tela encomendada na qual o motivo que serviu ao retrato daquelas três jovens damas casadoiras da sociedade inglesa é o rito de adornar uma estátua de Himeneu.

Teria como fontes o próprio Poussin — à época, como esclarece Gombrich, uma autoridade na grande maneira — & ambos estariam se reportando ao Hypnerotomachia Poliphili, o misterioso livro alegórico de Francesco Colonna, finamente gravado & publicado em 1499 pela oficina veneziana de Aldus Manutius.



No Hypnerotomachia descreve-se o sacríficio ao Himeneu, & a gravura correspondente ao texto mostra o triunfo de Príapo (acima) com o sacrifício do asno ao deus, como lemos nos Fastos, de Ovídio, & com os oficiantes quebrando frascos de vidro com o sangue do asno, com leite & vinho, & lançando-lhe frutas, flores & folhas, pois é um deus da fertilidade.

É interessante lembrar que a exposição também apresenta uma edição recente (1999) do livro aldino, em tradução para o inglês, aberta na página da gravura, estabelecendo a conexão iconográfica, embora eu não me recorde — posso estar errado — de ter lido o nome de Gombrich por lá.

Poussin é devolvido, em certo sentido, a si mesmo, porque aquela clarté française que se lê nos textos literários poderia imaginariamente ser transposta a seu estilo plástico. Enfim, isto é apenas um reclame, como diziam in illo tempore, para que as leitoras & os leitores aproveitem & dêem um pulo no MASP para prestar seus respeitos ao deus & ao pintor. Aliás, me ocorre agora um trocadilho de matar. Melhor não.

sábado, 6 de março de 2010

Três pequenos poemas de Jean Cocteau

Está explicado como Cocteau conseguia fazer tanta coisa


Jean Cocteau fez de tudo: poesia, romance, teatro, música, crítica literária & de arte, cinema, fotografia, cenografia, performance, & uma porção de etc.

E era excelente em cada uma dessas coisas, o que gerou uma ciumeira danada, & mesmo hoje muita gente quer dizer que ele era apenas um sujeito que não sabia parar quieto. É bobagem, era um artista completo. Dava entrevistas inteligentíssimas, captava coisas complexas com facilidade impressionante.

Pouco lido & ainda menos traduzido no Brasil, as usual. Seu cinema é um pouco mais conhecido, sua obra plástica chega em algumas edições estrangeiras. Ignora-se sua crítica de arte, seu teatro vez por outra aparece aqui & ali em montagens pequenas & independentes. É devagar.

Além de tudo, foi muito influente: de Ezra Pound a François Truffaut, quase todo mundo aprendeu alguma coisa com ele. Era um poço de anedotas (bem pouco gratuitas: todas educavam).

Proust por exemplo pediu que Cocteau tentasse fazer a Madame de Chevigné (em quem teria baseado a duquesa de Guermantes) ler Em Busca do Tempo Perdido. Cocteau respondeu a Proust: "é o mesmo que pedir para uma formiga ler Fabre".

Ou, quando conta da reação de Erik Satie ao saber que Ravel recebera a Legião de Honra & a rejeitara. Satie teria dito: "Pode ter rejeitado, mas toda sua obra a aceitou".

Venho aos poucos traduzindo Le Cap de Bonne Ésperance (1919), que vocês sabem como é a vida, mas trago aqui um modesto aperitivo, três poemas colhidos na obra de Cocteau.



De SÓCRATES

O que distingue essa tumba
Das outras, dito de passagem,
É que aqui não vêm as pombas,
Mas dois cordeiros da pastagem.

Visitadora, não vos vexe
Esta sábia vítima dos tolos:
Foi a graça do vosso sexo

Que ele amou nos garotos.



Do DISCURSO DO GRANDE SONO

Eu trabalho, eis aqui a pluma,
o papel : a pista branca
onde o homem pode tourear o mistério.



ÍDOLO

Todas tuas velhas cicatrizes
Terra
foram o charme
da tua figura de guerra

sexta-feira, 5 de março de 2010

Um beijo & um golpe de lança

Sordello se dirige a Virgílio & Dante — retratado no monumento a Dante, em Trento —
como no canto VI do Purgatorio.

Numa tenso (ou "tenção", gênero da poesia trovadoresca ocitânica praticado no cordel brasileiro como o "desafio") entre Bertrans D'Alamanon & Sordello, o trovador italiano, o primeiro dava uma estrofe louvando as armas, & o outro, o amor.

Sordello é famoso: Dante, Browning & Pound se interessaram pelo trobador. Ele reclama da "serva Italia" na Commedia de Dante, como séculos mais tarde ecoaria nas palavras dos Canti de Leopardi. D'Alamanon é quase um desconhecido da fama, mas por sorte consta com cinco canções da monumental & imprescindível antologia de Martín de Riquer, em três volumes, Los Trovadores.

Sordello está do lado certo, falando dos feitos de amor, &, na minha modesta opinião, vence o debate no fim de uma das últimas estrofes, com um golpe fatal de sagacidade desferido nos argumentos de seu colega belicoso.

Ponho abaixo uma velha adaptação que fiz a partir de uma ainda mais velha versão francesa do original ocitânico (não se trata de uma tradução, serviu aos meus propósitos no meu primeiro livro de poemas, MCMXCVIII). Gaudete.


Cairás do lombo de teu cavalo,
eeeeeeeeeeeeeeeenquanto
Cairei no colo de minha dama.
eeeeeeeeeeeeeeeMesmo
Que te tornes valoroso na França,
eeeeeeeeeeeeeeeacho mesmo
Que um beijo doce
eeeeeeeeeeeeeeebem vale
Um golpe de lança.