terça-feira, 13 de novembro de 2018

STAN LEE (1922-2018)

Trigésimo mês,
Ano III do Golpe de Estado, 
Ano I da Era Fascista



LULA LIVRE



Stan Lee, o grande visionário das HQs,
desenhado em um poster com as imagens
combinadas de seus personagens inesquecíveis.


Uma das fotos mais antigas minhas, em álbum de família, mostra um pivete que nem ainda sabia ler com um gibi do Homem-Aranha nas mãos, entretido como se entendesse tudo (talvez entendesse: Will Eisner sempre defendeu que a "arte sequencial" tinha a missão, como também o cinema, de dar sentido com imagens - a despeito das palavras - editadas pelo olho do artista).

Foram as HQs que me introduziram à leitura prazerosa, mas foram também o meu primeiro contato com arte, quando comecei, não como escritor, mas como desenhista, a rabiscar coisas.

Ao voltar do trabalho, sabendo que eu & meu irmão éramos viciados em HQs, meu pai muitas vezes trazia um gibi consigo, aquele velho esquema do chamado "formatinho" (13 x 21 cm) publicado pela Editora Abril, & eram sobretudo os gibis da Marvel & sobretudo o Homem -Aranha. Me tornei um leitor voraz de HQs & passei a colencioná-las, de todo tipo.

O Aranha é um herói meio torto, porque Peter Parker, sua identidade civil, é um rapaz cheio de problemas: familiares, escolares, amorosos & de grana. E, por vezes, problema de identidade, já que ser um super-herói também não é nada fácil.

E o segredo de Stan Lee estava precisamente aí, mais claramente demonstrável no Aranha: os dilemas do herói eram de fácil identificação.

Anos mais tarde eu já o desenhava: sempre gostei mais do Homem-Aranha na versão do excelente quadrinista John Romita, sobretudo se a arte-final fosse a de outro artista genial das HQs, Gil Kane, que junto com Jim Steranko & Neal Adams estava, no fim dos anos 1960 & começo dos 1970, reformulando o estilo dinâmico das HQs de heróis tal como fora inventado pelo insuperável Jack Kirby.

Abaixo, vocês têm um dos meus esboços antigos para o Aranha, quando eu ainda achava que seria um artista de HQs:


Nunca me esqueço do que lembrou um querido
amigo meu, Thiago Lins (grande conhecedor de HQs, 
entre outras coisas), em prefácio à sua tradução do Tarzande 
Edgar Rice Burroughs, sobre a influência daqueles cipós da selva 
nestes cipós de teia na cidade de Nova York.

Por que tudo isso?

Porque ontem morreu o maior nome das HQs de super-heróis, Stan Lee. 

Stanley Lieber teve uma história incomparável como inventor de heróis, redator, editor & depois a cara & o humor da Marvel Comics, que acabou por bater a Distinta Concorrência & se tornar a maior empresa de gibis de super-heróis.

Stan Lee criou o Quarteto Fantástico (1961), criou o Homem-Aranha (1962), o Homem de Ferro (1963), o Thor (1962), os X-Men (1963), o Hulk (1962), o Doutor Estranho (1963), o Demolidor (1964), o Pantera Negra (1966), o Surfista Prateado (1966) & um grande etc. 

Escritor, foi acompanhado, em todas as ocasiões, de outros gigantes (artistas como Steve Ditko), mas sobretudo de seu parceiro favorito (& depois desafeto, & depois meio que amigos de novo), Jack Kirby.

Kirby tem o apelido "The King": foi o artista mais influente, & basicamente o primeiro, a desenvolver a estranha estética desses personagens com um status quase mítico, os super-heróis. 

Inventou o Capitão América (1941) na mesma época em que surgiram o Superman (1938) de Siegel & Shuster, o Batman (1939) de Bob Kane & Bill Finger, & o Spirit (1940) de Will Eisner.

Seu desenho, facilmente reconhecível, era estilizadíssimo em escorços impossíveis de anatomia, em arrojo absoluto de perspectiva, com as figuras quase saltando da página.


Not a bad job, Jack, not at all

Ele deu forma à maior parte das criaturas que saíam de sua mente & da de Stan Lee. 

E Lee possuía uma sensibilidade de escrita rara: melodramático, palavroso, mas consciente, como nenhum outro, das fraquezas humanas mas também de um heroísmo comovente, era sempre exato no humor algo ridículo que, como na vida, utilizamos para dar válvula de escape às agruras.

Seus heróis eram, então, empaticamente falíveis; mas eram mais: eram divertidos, patéticos, bravamente heróicos, coloridos, ultrajantes, fantasiosos com um pouco de sensibilidade de novela, aventurosos com as forças então ainda pouco comuns de filosofia & mesmo um tanto de ficção científica.


O Surfista Prateado, herói extraterrestre, filosófico
& humanitário, com poderes cósmicos & pele resistente
aos rigores do espaço sideral, no traço de John Buscema.

Lee tinha um fraco por um de seus personagens mais trágicos, o Surfista Prateado, & punha nele, herói exilado de seu planeta de origem, Zenn-la, uma filosofia algo superficial, mas suficientemente existencial para cativar leitores de um meio ainda pouco sofisticado em seu regime industrial, & que Lee assim transformava, tornando possível, no futuro que já é o passado, coisas como o Dr. Manhattan em Watchmen (1986), obra-prima de Alan Moore & Dave Gibbons.


Dr. Manhattan, auto-exilado em Marte, cansado
das confusões & dos mesquinhos dramas humanos.


O Surfista também é um dos meus prediletos. 

Stan Lee, já um dos maiores criadores das HQs, & já no mundo das Graphic Novels dos anos 1980 - os chamados "romances gráficos", já concebidos por Will Eisner nos anos 1940-, teve a oportunidade de trabalhar também com um dos maiores nomes das artes gráficas, o artista francês Moebius (a.k.a. Jean Giraud), num livro em que revisita seu personagem querido, Parábola (recentemente reeditado no Brasil).

Palavras & roteiro de Stan Lee, 
arte de Moebius.

É difícil imaginar o que seria da hoje monstruosa indústria dos super-heróis sem Stan Lee: sua capacidade de imaginar roteiros espantosos, sua persona de tiozão bonachão, contador de piadas & causos, seus bordões & suas participações especiais nos agora famosíssimos filmes baseados em seus personagens o tornaram uma espécie de ponto focal do gênero, um Homero dos gibis.


Recordação do New York Times 
para o grande mestre das HQs.

É por isso que sua morte, aos 95 anos, deixa esse novo gênero em definitivo sem suas origens: Kirby morrera em 1994. 

Muitos de nós lhe devemos muitas horas felizes, estimuladoras da imaginação, simplesmente divertidas ou mesmo iniciadoras de carreiras. Suas histórias são parte significativa da cultura ocidental, mesmo com a crítica por vezes muy dura a essa invenção já existindo mesmo dentro das HQs, como é o caso da excelente Marshall Law: Crime & Punishment, de Pat Mills (escrita) & Kevin O'Neill (arte).

Os super-heróis, paródias maníacas das criações da Marvel,
encontram morte funesta fugindo do manicômio.


Não é pouco para um camarada dickensiano, sempre sorridente & com uma imaginação extraordinária.

Descanse em paz, bom & velho Stan. Excelsior!