domingo, 31 de maio de 2009

Amor, agridoce: um breve gabinete de curiosidades

E. J. Bellocq, sem título

(Este texto foi redigido no espírito nômade de Kunst und Wunderkammer)

Susan Sontag escreve, em um texto sobre E. J. Bellocq (1873-1949) — o hoje célebre fotógrafo então secreto das prostitutas de New Orleans — que considera painful (doloroso) olhar para as 11 fotografias em que o rosto das mulheres foi riscado, talvez pelo próprio autor; e que não vê nada de romântico na prostituição — como muitos homens vêem, afirma.

Devemos lembrar que Bellocq também mascara com gosto algumas de suas prostitutas, o que é um modo fantasioso de tirar o rosto a, emprestando-lhes o mistério dúbio (entre atração & repulsa) de um corpo sem identidade.

Mas, ela diz, as fotos são "inesquecíveis": é evidente que sim. Se os corpos docemente eróticos trazem esse amargo do apagamento do rosto, é possível também pensar, por outro lado, na própria condição das modelos, como se disse antes, & dos lugares ordinários em que muitas das fotos foram tiradas.

Há o fascínio de base na idéia de proibição, que exibe por um lado o belo & prazeroso, & por outro, a experiência do perigo, ou do limite.

O erotismo não apresenta uma versão pacífica do mundo também porque a intensidade de sua experiência marca, dessa forma, um limite na vida & no prazer, & assim funciona como um memento mori, uma lembrança da finitude, & não é por acaso que os franceses chamam ao orgasmo petite morte, uma “pequena morte”.

É um ápice de experiência, um máximo de vida, que aponta para o seu contrário, já que, por definição, os opostos se espelham &, do espelhamento, a identidade.

Diferente de um conto de fadas, onde a história é suspensa no judicioso casamento idealizado, a sexualidade tem essa força imaginativa & rebelde justamente porque não se rende à contemporização social. Sente-se que é algo à parte, que deve ser controlado por pertencer, sobretudo, ao instinto.


Agostino Carracci, Baco e Ariadne

Mas é precisamente nas artes, que representam não apenas o socialmente aceito, mas o que potencialmente ressoa, que encontramos essa coisa inquietante & magnética, livre de condicionamentos exteriores ao fato em si.

E assim é fácil encontrar, lá, as vulnera amorum, ou as "feridas de amores” (em que devemos sempre perceber a duplicidade da idéia de "ferir", que é empregada também com conotação sexual). Alguns as recebem de bom grado; outros, se lamentam. O amor é doce em seus encontros & fere por seus desencontros.

Daí, em um poema de Ausônio, Cupido Cruciatur ("O Cupido Crucificado"), lemos que os amantes míticos, injuriados com o pequeno filho de Vênus & as ações de seu arco com flechas — flechas que conduzem a tanto prazer infeliz — pegam-no, amarram-no numa árvore, & passam a castigá-lo.

Chega sua mãe, mas não para salvar sua delicada pele: lembrando de que ele é culpado de seu adultério com Marte, também ela o pune. Como? batendo-lhe com um relho feito de roseira, que tem a bela & atraente flor perfumada, mas cujos ramos são espinhosos: como, suspeitamos a essa altura, seja também o amor (& assim sua punição é contrapasso).

Há no MASP uma gravura de Agostino Carracci, “Vênus punindo Cupido”, na qual vemos o moleque, vendado & seguro por outro, levando uma surra de Vênus, que ergue o relho no alto.



Agostino Carracci, Vênus punindo Cupido (1590-95)

Carracci é conhecido por suas gravuras eróticas, & aqui não passa despercebido o potencial de fantasia do episódio, diferente do aspecto moral que poderíamos ver na gravura de Albrecht Dürer, em que Cupido, metendo a mão no mel, é picado pelas abelhas & talvez então dissesse, como Safo disse aliterativamente em grego: μήτ᾽ ἔμοι μέλι μήτε μέλισσα, “a mim nem mel nem abelha”.


Albrecht Dürer, Vênus e Cupido, o ladrão de mel (1514)

O poema de Ausônio nos propõe o que Marsilio Ficino atribuiria, na Florença do século XV, a uma tradição órfica, que terá lido também em Safo: o amor é glukúpikron, ou "agridoce", que platonicamente mata aquele que ama, uma vez que quem ama não vive mais em si, vive em outro.

E isso também foi, antes de Ficino, Petrarca: Guerra è il mio stato d’ira e di duol piena/E sol di lei pensando ho qualche pace.//Così sol d’una chiara fonte viva/ Move ‘l dolce l’amaro ond’ io mi pasco.

Se aceitamos o engenho de Edgar Wind ao ler o Hypnerotomachia Poliphili (1499), de Francesco Colonna, entendemos que as escolhas formais dentro da obra também figuram o dolce/amaro. O livro foi escrito como um código alegórico: místico, artístico & filosófico do que se chamava religio amoris, ou religio Veneris, a religião do amor, a religião de Vênus.

O personagem, Poliphilo, passa por diversas experiências amorosas, que vão da contemplação de uma arquitetura projetada com a geometria divina até o contato físico com ninfas que alegorizam diversos estágios dos mistérios.

Wind argumenta que a escolha da língua em que Colonna escreveu, uma mistura da estutura italiana com léxico do latim, configura também, por si, a aspereza na leitura daquela imensa doçura.

De modo que, tardiamente, no século XVIII, poderíamos ouvir o mesmo conceito no contraste entre o tema grave do Notturno per i morti & sua execução doce & ligeira, na música dúctil & elegante de Nicola Porpora.

Gravura do Hypnerotomachia Poliphili, de Francesco Colonna (1499), apresentando Poliphilo curvando-se à rainha Eleuterylida (livre-arbítrio) diante de suas ninfas.


Nota-se que o bem colocado adjetivo painful, que Sontag deu por outros motivos às fotos agridoces de Bellocq, estabelece uma antiga linhagem erótica de variados sentidos sutis que se hipertrofiou, mais tarde, no sadomasoquismo.

Mas, antes disso, a idéia dos libertines do século XVIII seria a de um hedonismo erótico que pouco conhece o desprazer, porque desconhece implicações morais do cristianismo & desconhece travas sociais que resultam em psicanálise.



O traço fino & requintado do Barão von Bayros em suas ilustrações pornográficas de imaginação inesgotável, que emulam, no começo do século XX, as delicadezas pornográficas dos libertinos do século XVIII.

As proezas de jogo, pornográficas & mesmo intelectuais de Giacomo Casanova são as de um bon vivant aventureiro, que não acredita na melancolia. E isso desde a sua proposição:

Cultiver les plaisirs de mes sens fut dans toute ma vie ma principale affaire; je n'en ai jamais eu de plus importante. Me sentant né pour le sexe différent du mien, je l'ai toujours aimé, et je m'en suis fait aimer tant que j'ai pu. J'ai aussi aimé la bonne table avec transport, e passionnément tous les objects faits pour exciter la curiosité.

Sem culpa ou qualquer sentimento de pisar em território duvidoso, seja o sexo, seja a "boa mesa", ou os objetos feitos para excitar a curiosidade (a definição do que um mau humor moral chama "frívolo").

E lemos esse mesmo esporte amoroso na recusa sedutora & falsa da longa sedução de boudoir do soneto glosado de Dom Tomás de Noronha, “Do Gosto dos Namorados” (estrofes V-VII):

V

Um chegar para a cama recatada,
fazendo mil meneios de escapar-se,
um pedir que a luz seja apagada,
um dizer que aos pés quer acostar-se,
um tirar o mantéu quase enojada,
um vagaroso e tardo descalçar-se,
um culpar de apetite tão ousado,
um ai que nos ouviram! que é pecado!


VI

Um ferrar e dizer senhor, deixai-me!
deixai-me, não me atrevo, i-vos embora!
não posso fazer tal, antes matai-me!
outro dia vireis, não posso agora!
fazei-me este favor, e contentai-me,
outra cousa farei por vós outra hora!
(e um dar com ela logo sobre a cama)
um ai que minha Mãe nos ouve, e chama!


VII

Um dizer senhor, mal me tratais!
um suspirar contínuo e afligido,
um retirai-vos lá, que me matais,
deixai-me erguer, senhor, que sois sentido!
um valha-me o Senhor! que rijo estais!
já tenho o corpo como sal moído,
um ai de mim, que soa muito a cama!
um ai de mim, que perco a honra e fama!

****

Um anátema moral, antigo, se opõe a essa tradição do prazer exercido como arte desde a Ars Amatoria de Ovídio (ou mesmo antes), & foi cristalizado na Idade Média na figura da Frau Welt, a “Senhora Mundo”.

As imagens da Frau Welt (ou a Vanitas latina) mostram uma mulher que, de frente, é jovem & desejável, mas, às costas, leva todo o tipo de horrores & imundícies, comida de vermes, propondo que o reverso do prazer mundano é a morte.

(O que encontramos explorado cinicamente por Rimbaud, na “Vénus Anadyomène”).

A Frau Welt

Os livros de Sacher-Masoch & do Marquês de Sade hipertrofiam a idéia neoplatônica de glukúpikron. Neles, o sofrimento desempenha um papel mais óbvio, explícito, ao invés de ser uma sutileza ambígua, & desaparece a interpretação metafísica da sexualidade, restando a mecânica do ato em si para operar essa natureza agridoce percebida na sexualidade, agora cruel.

É também a exploração daqueles limites da sexualidade, que buscam o seu avesso.

O castigo deve parecer prazer, & vice versa, como vemos naquele polêmico quadro pintado pelo brilhante Balthus, “La leçon de guitarre”, que funciona mais dentro de uma hipótese de fantasia do que propriamente sadomasoquismo. É quase alegórica a superposição de sentido entre imagem & título.

Balthus, La leçon de guitarre (1934)


Mas é, evidentemente, a recente angústia já psicanalítica da sexualidade, praticada como doce provocação. O fundamental, me parece, é perceber nas representações que a variedade das idéias reconduz a um mesmo princípio.

E daí temos, por fim, a fotografia recente de Joel-Peter Witkin, que faz referência direta à de Bellocq numa chave de perversidade, ou de inversão ou confusão explícita de um acordo social entre os lugares do prazer, do horror, da morte, da própria sexualidade, freqüentemente representada em corpos femininos com pênis (como a Vênus transsexual, a partir de Botticelli), homens com seios, etc.

Witkin parafraseia a fotografia do século XIX, mas também a parodia, encontrando nela as “peculiaridades a se olhar com lupa”, como escreveu Rimbaud na “Vénus Anadyomène”. Witkin é como o dramaturgo John Webster, segundo o verso de Eliot: much possessed by death. E pratica um contraste/combinação entre beleza & deformidade, misturando-as sem propor-lhes hierarquia alguma, moral ou estética.

Joel-Peter Witkin, Poussin in Hell (1999)

É amor já dentro do seu oposto: o que antes nada mais era que um instante singular de contato, agora torna-se identidade pela força moderna da aproximação do distante.

Mas outros, como Ellen von Unwerth, vêem o amor também como um “segredo deleitoso” à la Milo Manara.


.Silêncio.




Ellen von Unwerth, sem título

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Um anarquista & outros contos


O autor de A Set of Six, em seis retratos

Saiu pela editora Hedra a tradução que fiz de quatro dos contos do excelente volume A Set of Six, que Joseph Conrad publicou em 1908.

Escrevo também uma breve apresentação ao livro de Conrad, que é um precioso artigo da arte do conto: o polonês estava já de posse de todas as suas muitas habilidades como narrador, & propôs pequenas narrativas que ao mesmo tempo prendessem seu leitor & sugerissem, no apurado uso da linguagem, outras camadas de leitura.

Ficaram de fora apenas os dois mais longos, "Gaspar Ruiz" & "O Duelo" (que Ridley Scott adaptou em 1977 no filme The Duellists, com Harvey Keitel). No livro traduzido estão: "O Informante", "Il Conde", "A Bruta" & "Um Anarquista".

Abaixo, a capa da Hedra.


terça-feira, 19 de maio de 2009

CULTURA AGORA, EM QUATRO NOMES


Há autores fundamentais & idéias fundamentais sobre cultura, recentes, que ainda não tiveram o impacto necessário: não são obscuros, é evidente, mas a verdadeira dimensão de suas contribuições está muito longe de ter atingido um nível condigno de aplicabilidade.

São idéias acháveis em livros cuja importância parece se projetar no futuro, porque propõem algo melhor, ou mais amplo, ou mais generoso do que o que se vive. Têm todos aquele aspecto humanístico que é comum ver pronunciado extinto por todo lado.

Não está. E não apenas não está como também apresenta o resultado extraordinário de algumas mentes em ação: são todos autores que conhecem o mundo moderno, mas já são capazes tanto de criticar com precisão os equívocos modernos, quanto de incorporar essa experiência, reinventada.

Comento alguns muito brevemente — quatro aqui —, indicando edições em português & acessíveis.


a) Paolo Portoghesi (1931- )



O grande arquiteto italiano — na minha opinião, o maior arquiteto vivo — é também um pensador seminal.

Após as paisagens modernas terem surgido em metrópoles industriais, infladas & desordenadas, nas quais a qualidade de vida é o que já sabemos, assim como há um vazio na ética da construção (para não falar do aspecto meramente prático ou, por oposição, espetaculoso, de seu design), Portoghesi rediscute a arte da arquitetura no livro Depois da Arquitetura Moderna (aqui no Brasil, pela Martins Fontes).

Estudioso da arquitetura do Renascimento & pouco posterior (dedicou-se especialmente a Borromini), Portoghesi rediscute a questão dos materiais usados, questões de forma & paisagem, uma concepção ecológica do uso de arejamento natural & a utilização de fontes naturais de iluminação, também. Associa, num livro belíssimo, Natura & Architettura, formas encontráveis na natureza & formas históricas da arquietura.

É o oposto daqueles monstros de vidro e concreto, que arruínam o horizonte, escondem o sol, irrespiráveis & cinzentos. Sua obra de arquitetura compõe passado & presente. Repõe a arquitetura no centro do pensamento sobre a vida humana, & como força viva & imaginativa na organização dos espaços públicos.

Um arquiteto que saiba que a ética vitruviana não é mero papel para traças é algo muito, muito raro.


b) Murray Schafer (1933- )


O canadense Murray Schafer repensou o sentido do som, contextualizando-o no espaço & no tempo: aplica suas idéias à paisagem histórica, num conceito chamado soundscape, ou "paisagem sonora", em que aborda o significado do som dentro da vida diária, os sons a que estamos expostos (aviões, carros, rádios, telefones, o zumbido da eletricidade), & pretende reproporcionar a leitura que fazemos do som em sociedades do passado, que não tinham motores ou eletrodomésticos rugindo a toda hora.

É evidente que Schafer parte de outro músico & pensador recente, John Cage, que terá sido o primeiro a pensar nos termos de uma sinfonia de ruídos. Schafer, justamente por esse complexo sonoro inconsciente que foi se juntando à vida, procura torná-lo consciente numa idéia de ecologia sonora.

Um de seus livros mais importantes é O Ouvido Pensante, da década de 1960 (publicado aqui pela editora da Unesp).


c) Jerome Rothenberg (1931- )




O poeta estadunidense, ligeiramente posterior aos beatniks, desenvolveu o conceito de etnopoesia, isto é, aplicar os mecanismos do que chamou "tradução total" para traduzir não apenas o que diz um poema de uma sociedade, por exemplo, indígena, mas também tudo o que concorre para sua produção original.

E assim, por exemplo, na tradução das Horse Songs, Rothenberg também adapta o recitativo encantatório Navajo original para o inglês.

Partindo das muito amplas & variadas hipóteses de tradução poética de Pound, Rothenberg acrescenta uma nova dimensão a essa experiência pela hipótese de que a mera literalidade na tradução de textos (de qualquer espécie) de outra cultura rouba-lhes aquilo que fazia deles poderosos mecanismos de geração de sentido coesivo.

Seu trabalho devolve aquele equilíbrio desejável que se observa nas melhores traduções de poesia, entre a forma & o sentido (porque sentido é forma & viceversa, como sabeis).

Não apenas isso, Rothenberg também reuniu antologicamente a tradição moderna (um contrasenso já resolvido por Octavio Paz) nos três enormes volumes de Poems for the Millennium, que põem todo o modernismo de vanguarda sob nova perspectiva, facilitando o estudo de suas proporções.

No Brasil podemos ler Rothenberg na edição da Azougue (Etnopoesia no Milênio), com poemas & ensaios traduzidos por Luci Collin.


d) João Adolfo Hansen (1942- )


Muito provavelmente o maior crítico literário brasileiro, seus livros — & ensaios ainda não coligidos, o que é lamentável — são, para se ter uma idéia, indispensáveis para a leitura informada de Gregório de Mattos, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade & João Guimarães Rosa.

O que fez não é pouco: restituiu, com uma leitura eruditíssima, a complexidade latente (porque não lida pela crítica anteriormente) nesses autores. Discutiu o caráter anacrônico da maior parte das leituras modernas de obras anteriores ao século XIX & demoliu alcunhas retrospectivas que se penduram na linha do tempo — como, por exemplo, Barroco — & assim expande a discussão de seus autores para um âmbito que retraça formas mentais.

Hansen, muito ao contrário do que possa parecer, é menos um fruto da universidade brasileira do que uma grata anomalia dentro dela. Sua seriedade investigativa & o alcance de sua memória (para sequer mencionar o volume de leituras aproveitadas) são únicos, & não apenas no Brasil, é necessário frisar.

Livros seus: A Sátira e o Engenho (com nova edição da Unicamp + Ateliê), que estuda Gregório de Mattos, ou Alegoria: construção e interpretação da metáfora (em nova edição da Unicamp + Hedra).

quinta-feira, 14 de maio de 2009

transparências: seis poemas inéditos


finezas que se foram

mordomos furtivos acendem idéias na mansão
longas pernas saltitantes de criados-mudos
nós engomamos brumas para fora
gravatas borboleta ainda nos casulos

eeeeeeee& há bem menos luvas de pelica no mercado
eeeeeeeedesde que baniram os duelos.




*******

retratos

passado, nem tão distante: rural;
posam, como em retratos a óleo,
circunspectos, em formações triangulares
as roupas melhores

em festas de bairro: com ternos e rendas
em casa: onde se vêem cercados de plantas
no exército: rapazes em grupo, agachados, sorriem

senhoras nos quintais apertam os olhos ao sol matinal
em varandas floridas e fachadas que parecem brotar como árvores
diante de procissões;

eeeeeeeeeeeeeeeeeeegarotos se empurram e riem
infringindo o decoro solene de quem encara as lentes
como encara a metafísica do tempo;

congelados todos no imóvel retângulo
que apela à memória
e murmura aos seus olhos “quanta morte
já foi vida”:
eeeeeeeeeeeeeeeeeeeretratos como fendas na parede
por onde tudo o que foi se esforça para ser
em nós ou conosco
novamente.



*******

por favor, sussurre

I shall whisper
Heavenly labials in a world of gutturals.
It will undo him.
eeeeeeeeeeeeeee
“The Plot Against the Giant”, Wallace Stevens

por favor ouvidos
em obras por favor
sussurre

sim use sua voz
de veludo invadindo
docemente

o labirinto convoluto
e sem volta por favor
carícia

contra sentido
sereias de cetim por
favor venham

a mim

sussurrem por
favor.


*******



hippie horror show

!
opiáceo & biodisponível, o dr. leary hipnistérico
na tv, como o coringa, em ’72,
levado pra cadeia de agasalho-gargalhada entre dois policiais
saídos dos velhos beasty boys em sabotage;
e quem seria aquele anão de costeletas?

manson, mcluhan,
com hipérboles & hypnópsis sob a divina mania:
galáxia/gutenberg: a “tamanha boca aberta” de horácio,
e também o que concluía: riduculus mus.
fading stars sob saturno aos 28 anos,
para se escolher morte ou morte, os soberanos
tiros ou demônios em hotéis, fogões a gás,
diante da massa-pudim de mentes-tubos-&-válvulas
numa guerra dos mundos o vermelho saturado,
rasgando identidade nascimento burguesia

então
ao vento com canções de pés descalços
& pernas vadias badalando penduradas sob holofotes
na ilha de wight (o que não tem a ver com tennyson),
saltitantes satélites como o gordo ginsberg,
quando baco se mandou com olíbano e folhas de parreira
desistindo: pra mim chega do ordinário oriental
― ele que zanzou pela índia & a tunísia,
em mosaicos que o provam – fumaça
& insanidade, câmera na elétrica lama
da fazenda american gothic de grant wood,
lama ou geléia, dá no mesmo, angústia
no espelho da cansada civilização, duplicada & envaidecida:
a síndrome de dorian gray,
belo cadáver para autópsia literária.

o fracasso anunciado
vestirá o terno gucci dos yuppies
ou gente que aceitou bem o martírio
numa neblina de filmagens super-8,
daguerreotípicas. tudo triste como a carne,
mesmo ou sobretudo quando queima: as duas religiões
que se consomem. ler john donne.


*******


quatro pontos fosfóreos


brillaient quatre points de phosphore
paul verlaine


é preto
o gato suave
sobre
& entre os seios;
junto
de seus cabelos pretos,
em
suas mãos de unhas
pretas;

& se confunde
o animal felino agora
numa espécie
de feitiço
:
você se move
&
absorve
os mistérios
desse gato
em nova forma
:
mistura-se
em seu corpo
o espírito sutil

os olhos

fechados do felino
abrem-se
em seu humano
rosto,

renovados
.


*******

intervalos

pequenas as mentiras
da sinceridade,
delicadas, impedem futuro
pavor de pessoas feridas.

pequenas as crônicas
dores das estratégias
de sobrevivência em sociedade,
alegrias casuais sem alarde.

pequenos incômodos
entre duas verdades,
como vestir lã inglesa, aquecido,
e os punhos coçarem.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

The Cramps gave me the creeps

Poison Ivy is evil


Now life is short and it's filled with stuff
So let me know baby when you've had enough

Oh do the dead, turn blue
Yeah the surfin' dead, as dead as you

There's nothing on the radio when you're dead
There's nothing at the movie show when you're dead
There's nowhere left for you to go when you're dead


Palavras sábias. O carpe diem, atualizado no modo peculiar dos Cramps de compreender as coisas.

Estava escrevendo essa postagem (porque gosto dos Cramps & me ocorreu de lembrar, sem motivo claro, do trecho de "Surfin' dead") quando soube que Lux Interior, o frontman, morreu ontem, dia 5.

Bom, agora isso quase tomou um outro sentido.

E o que é pior, me deixou com aquela sensação eerie das tais coisas entre o Céu & a Terra, cf. Hamlet.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Horácio Costa


Horácio Costa vai comemorar, na Casa das Rosas, nesta sexta, 8 de maio, os 20 anos de lançamento de seu livro Satori, publicado pela editora Iluminuras em 1989.

Aproveito para lembrarmos que Costa é um dos poetas brasileiros importantes em atividade; que quando ouvimos o onipresente — & sobretudo falso — resmungar de que não há mais poetas que prestem, & etc, deveríamos lembrar dessas coisas.

A mim me espanta que poetas da minha geração não sejam lidos nem comentados — é uma aberração crítica em pleno curso — mas é particularmente incompreensível que poetas da geração dele, nascidos na década de 1950 (& até anteriores), não sejam tão lembrados & discutidos quanto seria saudável & desejável.

Enfim, martelo na veeeeeeelha tecla. Mas é inevitável: Luiz Costa Lima fala à Folha que poesia não vende, o que é uma loucura, porque venda é coisa que depende de estímulo, & poesia, no Brasil, como sabemos, é uma atividade clandestina.

Clandestina, yessir, mas permanente. O poeta é um tipo obsessivo que não se curva às evidências. Ou teríamos 500 anos & perfeito silêncio.

Quero dizer: só se pode afirmar que poesia não vende se, depois de estimular as pessoas à leitura, nada acontecer. Antes, pas possible. Sobretudo porque seria adequado perguntar: como é que alguém — nesse caso, o respeitável público — vai saber se quer ler ou não determinada coisa se sequer sabe que ela existe?

E a maior parte dos críticos não tem a mais vaga noção do que está acontecendo na poesia: é a história de sempre.

O que importa é que leremos um poema de Horácio Costa, abaixo. Ponho um de Quadragésimo, que leio numa coletânea de sua obra, Fracta, feita por Haroldo de Campos. É um dos meus prediletos.
Gaudete.


HISTÓRIA NATURAL

Detrás do taxidermista, há a palha,
detrás do rinoceronte, a savana,
detrás desta escritura só a noite,
a noite que galopa até o fronte.

Na asa da mariposa assoma a lua,
na cabeça do alfinete brilha o sol,
nestas linhas reverbera um sol negro,
o astro que ora sobe no horizonte.

O animal dissecado da sintaxe
provê o verbo, o bastidor e a legenda
duma coleção mais morta que os mortos.

No gabinete de história natural
o visitante-leitor detém-se face
a mamíferos e insetos reluzentes.