domingo, 14 de julho de 2013

ULF STOLTERFOHT (1963)




Há um ano eu retornava de uma semana feliz & produtiva em Berlim, onde trabalhei com o poeta Ulf Stolterfoht produzindo traduções de seus poemas, enquanto ele traduzia os meus, & nós dois éramos auxiliados pelo tradutor português Tiago Morais ― que fez valer seu status de pessoa bilíngüe naqueles dias.

O VERSschmuggel (ou "Contrabando de Versos") foi uma oficina muito instigante dentro do PoesieFestival de Berlim. Entre o fim de agosto e o começo de setembro, deverá haver uma versão desse evento, agora aqui em São Paulo.

Como uma espécie de aquecimento, ofereço uma tradução minha (com a colaboração de Tiago Morais, natürlich) para um dos poemas desse grande poeta alemão. É, por assim dizer, um “extra”, que não constará da antologia a ser lançada aqui & na Feira do Livro de Frankfurt, compilando o resultado do VERSschmuggel de 2012, dedicado à poesia brasileira (e estiveram lá também Horácio Costa, Marcos Siscar, Jussara Salazar, Ricardo Aleixo e Érica Zíngano, além da participação do curador brasileiro, Ricardo Domeneck).

Escrevi um breve relato das atividades & apresentações do ano passado, aqui, & os leitores são gentilmente convidados a espiar, caso tenham ficado curiosos sobre como foi.

Ulf Stolterfoht (1963, Sttutgart) estudou alemão e linguística em Bochum e Tübingen. Publicou já uma dezena de livros de poesia autoral, & traduziu Gertrude Stein. Teve seu Fachsprachen I-IX (1998) traduzido para o inglês por Rosmarie Waldrop, que na pequena nota sobre autor e livro destaca “seu objetivo de evitar linearidade, referência, sentido pré-fabricado e, especialmente, o eu-lírico. Ao contrário, [os poemas] cultivam a ironia, o trocadilho, a fragmentação, a justaposição, a distorção”.

O mesmo vale para “erstmal die fakten”, traduzido abaixo. O método de Stolterfoht para pulverizar o antigo mecanismo da poesia não é apenas audaz, como engenhoso: percebi, do contato direto com sua poesia, o modo como compõe coincidências sonoras, ecos e inúmeros outros recursos em um artesanato novo que não prescinde do antigo. A mistura de prosa, verso, ditados populares, alusões, trechos extraídos de outras obras, se combina em uma escrita de staccato, urdida em blocos de texto organizados em estrofes vigorosas.

Gaudete.

antes de mais, os fatos: até o desmoronar final seguia o muro
assim quase em total paralelo à latitude oriental de greenwich.
se dividia e fazia de fenda entre esquerda/direita. um senão:
staaken. mas já se devia saber. entre clip e clop estalava mur-
murante o ribeiro. a tesoura na cabeça. o muro nas calças:

scherkinau, peter hacks etc. e é nisso que a torcida de hertha
se põe a coaxar: nosso pilar é egon bahr! em cada cachecol:
“günter gaus”. e: “mas não se pode mais erguer um muro
após bautzen” (eckhard kautzun). deleuze com uma reação,
como não? de costumeira hesitação. iggy pop, no entanto,

dizia ao muro em alto e bom som: yeah! wolfman jack fora
à staaken oriental e ficara estupefato. e bem típico, aliás,
até hoje biermann não abre o bico sobre o caso. mas depois
witsch: a racha corta leipzig reto. e atrás de suhl eram áreas
já tão pequenas que pareciam feitas só mesmo de muros.

várias partes de anhalt eram cercas. mister schewardnadse metia
a cabeça no muro. o efeito é famoso. mas já no mesmo dia beau-
camp e os boys passeavam por áreas libertas. ruína completa
em algumas zonas. mineração. e kyffhäuser, como não? bem
boa a arte lá feita, que bem merecia o seu nome ( “figurativ.”).

e aí, rapaz, onde estava, quando no outono cinzento o muro
caiu? não sei quanto a vocês, eu tinha vinte e seis, numa república
de estudantes perto de danzig. além disso eu, como já sabem,
não vou responder mais pergunta nenhuma. estou apenas feliz.
o teichoskop faz a mesura e sorri. saída ao fundo pela esquerda.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

O FIM DO SÉCULO XVIII SE APROXIMA

O rato gigante dos protestos contra o sistema financeiro,
visto de dentro da limusine de Eric Packer, em Cosmopolis(2012),
filme de David Cronenberg


"um rato se tornou a unidade monetária"
                                         Zbigniew Herbert

Estive pensando muito sobre a situação das manifestações no Brasil na última semana. Sobretudo porque reagi imediatamente à violência policial desferida contra os manifestantes em São Paulo (e assim integrei a antologia Vinagre, organizada com consciente urgência participativa pelos poetas Fabiano Calixto & Eduardo Sterzi), violência que acabou deflagrando inesperada & pesada multidão nas ruas, que chegou mesmo a atacar a polícia claramente aterrorizada em Belém & em Brasília (tentando defender, no Distrito Federal, o prédio do Itamaraty em cenas inacreditáveis que foram reproduzidas em todo o mundo).

O terror institucional foi algo inédito: imagens da polícia recuando & tentando segurar as portas da prefeitura em Belém, e coisa semelhante acontecendo diante das câmeras quando houve o perigo efetivo de invasão do Itamaraty, onde chegaram a começar um incêndio. Olhando as tomadas da crescente multidão se instalando diante do Congresso Nacional, iluminada quase que exclusivamente por holofotes dos helicópteros circundando a área, qualquer um perceberia que, se aquela multidão realmente cismasse, só uma completa tragédia poderia segurá-la. A resposta à violência injustificável em São Paulo, portanto, fez eclodir uma raiva represada, rara de se ver em um país que tradicionalmente aceita as injustiças porque quer continuar vivendo sua vida como der, sem confronto.

Então acho que o ponto a ser considerado é a perplexidade das autoridades que nunca poderiam esperar, não as multidões na rua, mas justamente a inédita disposição brasileira para o confronto. É inédita: não conto a guerrilha contra a ditadura porque a estupidez crassa & abertamente monstruosa de uma ditadura já leva por definição as coisas para os extremos.

Foi cruzada uma linha que instaurou mais temor nas autoridades do que elas vão admitir: o que ouvimos é se dizerem "surpresas", ou "indignadas", mas o que vimos no desespero da Rede Globo em fugir de cenários de guerra civil, em suas tentativas de pôr panos quentes sobre o fogo que tomava as ruas & e a lavagem mental da "manifestação pacífica", é o mesmo efeito de terror contido na cara (de pau) dos políticos que depois vieram falar aceitando manifestações ordeiras & condenando a violência. Artigo de Barbara Gancia na Folha do dia 21 deste mês dizia, com inteira razão & inteira lucidez: "Só quem nunca passou pelo desespero de uma fila do SUS, apuro ou injustiça na mão de autoridade pode considerar que 'paz' seja antônimo de violência. O que 'paz' pode fazer para atenuar a miséria de quem vive sem saneamento básico?"

O que é ainda mais interessante pelo fato de que são as mesmas autoridades cujo descaso em relação a essa coletividade sem rosto, o povo, resulta (sem que se preocupem com isso) em ignorância e morte; as mesmas autoridades que enriquecem com a miséria alheia, e que sequer piscam de vergonha ou terror diante de espetáculos desumanos como o da polícia ferindo os manifestantes o quanto pôde, quando essas mesmas autoridades supõem confiantes que ensinarão assim uma lição de medo a impedir que a indignação ganhe a rua.

Desta vez, não. Desta vez, erraram até mesmo no plano de contenção de sempre - casca-grossa - e foi o feitiço voltando contra o feiticeiro, como na extraordinária graphic novel de Alan Moore, V for Vendetta (1982-5), de que aliás a máscara - a do rebelde Guy Fawkes (1570-1606), da "Conspiração da Pólvora" que iria explodir o Parlamento inglês -, usada pelo personagem do título, é a máscara do grupo internacional Anonymus, & se espalhou por todas as manifestações aqui (não por causa da graphic novel, mas do filme que a popularizou em 2005).

Do ponto de vista rigorosamente objetivo, as autoridades mereceriam terror ainda pior, mas os manifestantes não pareciam acreditar no poder que sua fúria despertou. Foi como uma primeira revelação, sem a consciência da própria força, e essa foi a sorte das autoridades: os manifestantes recuaram nos momentos mais tensos.

Os panos quentes já estão fazendo seu trabalho de contenção por trás da flutuante consciência da massa pública: enfatizam o "pacífico", porque pretendem que tudo se reduza a mero desfile televisionado para as famílias; põem suas celebridades ocas para ecoar a voz do "povo", indignadas também com a vaga & metafísica "corrupção"; atacam políticos escolhidos a dedo, para a longo prazo ir implementando tipinhos mais trogloditas, tipinhos mais à direita, tipinhos ainda mais dispostos a servir aos cinzentos & anônimos donos do mercado, donos da política, donos da polícia, do modo que  a História repetidamente (Alemanha nos anos 1920-30, EUA no começo dos anos 2000, o próprio Brasil em meados da década de 1960) nos ensinou como funciona.
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E isso me levou de volta ao livro brilhante de Don DeLillo (1936), Cosmopolis (2003), filmado recentemente por David Cronenberg e que, mesmo com Robert Pattinson no papel principal, não foi bem recebido, nem compreendido & se o esqueceu por completo algumas semanas depois da estréia. Cannes o repudiou, críticos reclamaram, etc.

O livro de DeLillo é uma pequena obra-prima, a começar pela linguagem severamente estilizada que os personagens utilizam, e que varia conforme o personagem em questão. Amantes falam com frieza & deslocamento, homens de negócio falam a linguagem infernal da teoria crítica universitária, seguranças falam com a objetividade de máquinas, & assim por diante.

Ambos, livro & filme, começam na epígrafe do grande poeta polonês Zbigniew Herbert (1924-1998), que diz "um rato se tornou a unidade monetária", do poema "Crônica de uma Cidade Sitiada", de seu livro homônimo, de 1983 (há uma tradução disponível do poema, publicada há alguns dias na revista Modo de Usar). É importante lê-lo pela notável intuição de Herbert sobre todo e qualquer momento de comoção pública: a sensação de suspensão temporal, a sensação de se viver no esqueleto de uma situação social fantasma, o terror da violência generalizada,  a falta de tudo, e a impassibilidade decorrente de uma situação prolongada de violência.


Zbigniew Herbert (1924-1998)

A crítica acha Cosmopolis um livro menor de DeLillo, e a reputação do filme de Cronenberg tende a ser a mesma para seu cinema. É uma clara injustiça literária, cinematográfica e perceptiva, & penso que o único motivo para isso seja o mais elementar: não há mais crítica literária, no sentido forte do termo. Isso é um outro assunto, que abordei numa palestra recente na UNIFESP, e chamei "O Jogo dos Sete Erros na Crítica Literária Brasileira, Hoje". A maior parte do que disse então se pode expandir para a crítica exercida em outros países, com alguns problemas específicos de cada lugar como diferença.

E digo que é uma injustiça por dois motivos: não apenas DeLillo escreve grande prosa ali, meticulosamente certeira, mas também revela dons de profecia, que ele próprio rejeitou em entrevistas. DeLillo olhou para o que houve no mundo após a destruição do World Trade Center em Nova York &, como artista (no sentido "antenas da raça" de Pound) percebeu ligações sutis entre o amortecimento da experiência (e, conseqüentemente, da capacidade de reação emocional) e a vida quase toda experimentada de modo vicário, através do mundo digital ou de relatos externos; entre o limite que leva a massa à revolta e os ajustes para continuar tudo igual, feitos a partir da constatação de um limite; entre a extrema direita e a extrema esquerda.

A parte interna da limusine - cenário de quase todo o livro - aponta de modo inequívoco para o isolamento digital e para o isolamento dos ricos. É um isolamento emocional, também, e uma posição alienante de controle sobre o mundo, lido como traduzível em número comercial. E esse número, como Packer aprenderá, não dá conta do mundo, por mais que a matemática seja uma linguagem muitíssimo funcional, perfeita e abstrata, e, por isso, assemelhada ao que sonhamos que seja uma verdade. O livro é todo baseado nos números 1 e 2, em que a unidade funciona como o universo harmônico e a dualidade instaura o desequilíbrio, por assim dizer, caótico (no sentido de uma ordem ainda não compreendida). E, Cosmopolis, claro, porque o lugar minúsculo é todos os lugares ao mesmo tempo.

Mas escrevendo esse livro DeLillo demonstrou um ponto surpreendente: o sociólogo Robert Kurz (1943-2012) escrevia, ainda na década de 1990, que as sucessivas crises do sistema financeiro significavam, pela impossibilidade de se ter um período mais longo entre as crises, que o sistema capitalista havia chegado a um limite. A base de um comércio dito "livre" (porque não é livre, é um comércio dirigido por privilégios de atitude de mercado, como antes o privilégio era de sangue e títulos), baseado na exploração da força de trabalho, se transformava na oferta de serviços (em que entra a estimulação de desejos de consumo) e na manipulação virtual de uma idéia de valor desvinculada, já, da produção material de bens.

O que DeLillo demonstrou foi uma similaridade histórica. Os limites transgredidos pelo poder & os privilégios (e não só no Brasil) atingiram um limite estrutural, como, por exemplo, na Revolução Francesa. É assim que manifestações, como as que estamos vendo no Brasil, não têm uma pauta exata e unificada. Muitos em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Belo Horizonte, Fortaleza e etc. estão apenas dando vazão a uma fúria destruidora de quem julga já não ter mais nada a perder. Atacam símbolos do poder em prédios, monumentos, por exemplo. Por trás disso, está o limite da exploração financeira, o limite do descaso completo do poder público com as necessidades básicas, o limite do desejo do mesmo poder público de enriquecimento por meios ilícitos, o inacreditável limite de se ver numa Comissão de Direitos Humanos de um país ter no seu topo alguém que não tem a mais vaga idéia do que isso signifique, e ser, na verdade, o pior inimigo do que se possa chamar "direitos humanos".

Essas são apenas algumas das questões. A crise européia, a crise nos EUA desde 2008, filha sobretudo do governo Bush combinado ao nível absolutamente irresponsável de laissez faire concedido à especulação financeira, para sequer mencionar inúmeras instituições que simplesmente não funcionam mais para nada, mostram um problema inescapável, estrutural e fadado a se repetir até algo que lhe determine um fim. Falta filosofia para apurar essas questões, porque ninguém aprende a pensar filosoficamente (a não ser uns tipos estranhos que enfrentam o mercado para ter uma educação que dificilmente será convertida em sobrevivência), e por isso falta a esse momento uma capacidade de auto-avaliação dos termos em questão.

Os sinais da necessidade de mudança estão por toda parte, & basta sermos honestos ao olharmos para o mundo: nada do que nossos mecanismos oferecem responde às novas ou velhas necessidades humanas. Os desafios colocados pela destruição do meio ambiente são respondidos com ganância predatória (a que responde, por sua vez, uma crescente consciência dos rumos fatais que a coisa está tomando, & uma incipiente atitude de confronto), a decadentíssima "família tradicional" é finalmente questionada em seu cerne, por coisas notáveis ao menos desde o romance burguês e, mais recentemente, os filmes de Woody Allen. Chega agora com o clamor da necessidade aliás elementar de se assegurar os mesmos direitos legais e de representação, sem discriminação, à homossexualidade (os EUA finalmente ultrapassaram essa barreira falsamente moral, mas não sem uma verdadeira batalha ideológica, uma pressão consistente de segmentos sociais suficientemente esclarecidos a respeito do assunto, & mesmo assim, por um triz).

Enfrenta-se todo tipo de preconceito, a sombria ameaça do retorno da direita em cenários de totalitarismo, o fim do emprego, os modelos econômicos baseados em especulação financeira, as estranhas prioridades dos gastos públicos, a indigência completa dos serviços básicos, como educação (que está montada de um modo ideológico de controle, para no máximo produzir peças sobressalentes para o mercado de trabalho), saúde (que existe apenas para quem paga o seu peso em ouro), a segurança (com um modelo de polícia que é de duas mãos: uma servindo ao poder público, a outra servindo ao crime, e essas mãos muitas vezes se dão).

Luta-se (alguns poucos já lutam conscientemente contra isso) contra a insensibilidade que um mundo demasiado maquinal tem feito crescer ao separar as pessoas fingindo aproximá-las digitalmente (para nem dizer o nível de espionagem digital, de que se está cada vez mais consciente, também). E aí está um ponto curioso: parte do efeito contundente dessas manifestações é devido à internet e às redes sociais, com antes já haviam sido úteis em protestos vigorosos na Europa. DeLillo mostra manifestações, em seu romance, vistas apenas do lado de dentro da limusine, em particular quando Eric Packer recebe a visita insólita de sua professora de teoria, e temos algo para pensar, novamente.

Sim, teoria. De quê? Teoria, ponto. Como Platão posto ao serviço do tirano, Vija Kinski tem o dom amoral das associações de idéias complexas, & Packer paga para que ela ponha esse estímulo a seu serviço, um modo de pensar em voz alta, com outra cabeça extraordinária (mas de origem diversa) produzindo movimento. Como se um ricaço conseguisse pôr Slavoj Žižek para falar como costuma, pulando de um assunto a outro com enorme capacidade de pensar & argumentar.



Seria preciso ler o trecho todo, importantíssimo, mas vou apenas pôr um morceau choisi de quando Vija Kinski faz a seguinte pergunta a seu riquíssimo interlocutor, a respeito das furiosas manifestações a que assistem:

"Isso é raiva controlada, eu diria. Mas o que aconteceria se soubessem que o cabeça da Packer Capital se encontra neste carro?"

Ela o disse malignamente, olhos acesos. Os olhos dos manifestantes queimavam por entre as bandanas vermelhas e negras que vestiam, envolvendo a cabeça e o rosto. Ele os invejava? As janelas à prova de impacto mostravam fraturas à altura da testa e talvez ele pensasse que gostaria de estar lá fora, botando pra quebrar.

"Estão trabalhando com você, essas pessoas. Estão agindo nos seus termos", ela disse. " E se te matarem, é apenas porque você o permite, no seu doce sofrimento, como um modo de re-enfatizar a idéia sob a qual todos vivemos".

"Que idéia?"

O chacoalhar [os manifestantes chacoalhavam a limusine] se tornou pior e ele a observava tentando seguir seu copo de lá para cá, antes que pudesse beber dele.

"Destruição", ela disse.

Em uma das telas ele viu figuras descendo uma superfície vertical. Precisou de um momento para entender que rapelavam pela fachada do edifício à frente, onde havia as telas com indicadores de mercado.

"Você sabe aquilo em que os anarquistas sempre acreditaram".

"Sim."

"Me diga", pediu.

"O impulso de destruir é um impulso criativo".

"Essa é a marca registrada do pensamento capitalista. O reforço à destruição. Velhas indústrias precisam ser duramente eliminadas. Novos mercados precisam ser exigidos à força. Velhos mercados precisam ser re-explorados. Destrua o passado, faça o futuro".

Pouco depois dessa conversa, no romance, descrevem-se as lutas de manifestantes mascarados com a polícia, manifestantes tentando arrombar vidros de prédios, os indicadores do mercado de ações se escurecendo e, quando reacendidos, brilhando com o engenho dos manifestantes que substituiu os indicadores pelo verso de Herbert, citado no começo do meu artigo. Nesse momento, Packer está com a cabeça para fora do teto solar da limusine e experimenta o ar espesso de gás e de borracha queimada.

O livro de DeLillo é preciso, particularmente oportuno nestes dias, & sugere um desfecho imprevisível para todos os esforços de previsão. Esse desfecho tem, em parte, sua chave na palavra "destruição".

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O fim que se está anunciando pelos gestos de destruição cada vez mais freqüentes, entre bons & preocupantes, não é o fim do capitalismo, é o fim do século XVIII. Não será um fim bonito.

O único modo de transformar este mundo ocidental é o que já acontece: as instituições estão acabando ou se transformando, o ciclo iniciado por Iluminismo, Revolução Industrial e Revolução Francesa (e tudo o que veio em decorrência disso) está chegando ao fim. É a Dialética do Iluminismo, de Horkheimer & Adorno, compreendida pelas massas & na prática, & a revolta que se segue a essa consciência.

Quanto tempo levará? Não se sabe. O que se sabe, & é bom, é que já se pode dizer que não se trata exatamente do que lemos no célebre poema de Yeats, "The Second Coming": The best lack all conviction, while the worst/ Are full of passionate intensity (Os melhores não têm mais convicção, enquanto os piores/ Estão repletos de intensidade apaixonada).

A intensidade apaixonada contaminou também os melhores. E agora?

sexta-feira, 21 de junho de 2013

MARCELO GRASSMANN (1925-2013)


Não tenho muito o que dizer diante da notícia triste. Escrevi pequenos artigos  sobre a obra de Grassmann, verdadeiro & pouco reconhecido tesouro nacional, & o admirava imensamente. Tive a sorte de, anos atrás, assistir a uma aula sua de gravura no Museu Lasar Segall. É mais uma perda inestimável neste ano conturbado de 2013.

Para o novo livro escrevi um poema que não apenas cristalizou meu fascínio pelos meios técnicos extraordinários da fatura de sua obra ímpar, mas também buscou assinalar a luta que Grassmann promovia (era um de seus motivos recorrentes) na obra com a idéia de morte & finitude: a beleza hierática, os encouraçados, as criaturas de pesadelo & de sátira, as imagens repetidas.

Vai aqui, portanto, o poema onde gravei minhas impressões vivas do convívio com sua obra & do modo como incorporou em sua própria arte a de outros que tinham seu respeito & que o haviam influenciado. É, agora, dedicado à sua memória, como antes o teria oferecido ao artista impecável.


o triunfo de marcelo grassmann

qualquer carapaça: cara e pele.
olhar impassível ou cobiça se concebem,
temperados:
                       aço em fogo, duro em suave.
lanças, aves, monstros que a bíblia
deu em sonhos aos flamengos,
retornam bêbados com asas
em rua escura à meia-luz, livres
                      da mentira ao meio-dia.
metal se manipula em mineral,
em mãos, em massa mortal mas rígida,
mas matéria fina e maleável
                      onde a morte corta cabeças, conta cadáveres;
ela também morre, agora, presa em patas
de galinhas, na donzela transparente. a morte
imóvel, presa de enigma, 
                      se mistura em tinta, sua armadilha.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Novos poemas, novas páginas, novidades

Dirceu Villa ele-mesmo, em retrato de Valéria Garcia, 2013

Novos links para minha poesia e novos poemas meus surgiram de modo recente & simultâneo na internet, o que é um bom auspício para o livro novo que estou concluindo.

A edição especial do Suplemento Literário de Minas Gerais, de título "A nova poesia brasileira vista por seus poetas" (organizada por Fabrício Marques), apresenta poemas de vários autores contemporâneos brasileiros, representativos dos últimos 20 anos. A escolha foi feita e comentada também por poetas. Nela, figuro com "O Cutelo" (Icterofagia, Hedra, 2008), escolhido e comentado por Ricardo Domeneck:


No site alemão lyrikline disponibilizou-se uma página com dez poemas meus (alguns inéditos), parte da minha participação no PoesieFestival de Berlim, no ano passado. A página traz áudio da minha leitura e traduções de alguns poemas para o alemão (feitas pelo poeta Ulf Stolterfoht), para o inglês (por mim mesmo) e para o espanhol (pelo poeta uruguaio Alfredo Fressia e pelo poeta chileno Fernando Pérez Villalón):


Last, but no least, a versão digital da revista Modo de Usar & Co. publicou meu poema até então inédito "ação", que se pode achar aqui:


Gaudete.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

ANTONIO MEDINA RODRIGUES (1940-2013)

"Professor, mas que raio é o logos?"

Foi o que certa vez um aluno da graduação de Letras da USP perguntou ao professor, poeta, tradutor, palestrante e editor Antonio Medina, durante uma aula de grego. É a pergunta de um milhão de dólares, que qualquer professor minimamente enfadado encaminha piedosamente ao Liddell-Scott. E então Medina disse ao aluno curioso, e ao resto da audiência, mais ou menos:

Saira dia desses de casa para ir pagar contas no banco. Mas saira mecanicamente pelo portão de casa à rua, porque sua mente estava, é claro, no logos. E assim chegou ao banco e assim parou na fila diante do caixa, enquanto seus olhos tinham aquela expressão concentrada de vazio. Eis que, após um bom tempo, notou casualmente uma mulher no chão gesticulando para que se abaixasse.

Nesse momento em que a imagem peculiar o retirou da imersão no logos, percebeu, com alguma surpresa, que um assaltante roubando o banco gritava com ele pondo a arma contra sua cabeça. O feitiço se quebrara.

Esse mecanismo de imersão em linguagem, que o retirou momentaneamente do mundo, era o princípio de razão, discurso, palavra, codificado no vocábulo de peso filosófico e variada acepção técnica. E deu em excelente anedota.

Medina foi meu professor de literatura grega na faculdade, e com ele estudamos a métrica de Homero, o mecanismo de introdução dos epítetos como um hemistíquio, supostamente resto daquela ancestral origem oral do poema, entre outros mecanismos repetitivos e permutatórios que o evidenciavam; lemos os líricos arcaicos, de que Medina produziu uma antologia com traduções suas que são a melhor tradução para o português de certos poemas de Safo, Alceu, Mimnermo, e de líricos alexandrinos como Calímaco (e acho que ainda não foram publicadas - eheu! - em edição).

"Um Saio ora se escora em meu escudo", por exemplo, verso  brilhante que traduz logo o primeiro verso daquele poema de Arquíloco, exemplar de um mundo já não homérico, em que o soldado prefere preservar a pele do que se meter heroicamente no combate para reaver a gloriosa arma perdida.

Medina se tornou em grande parte um amigo, que sentava comigo e com meus amigos por vezes nos intervalos para discutir literatura e dizer besteiras, beber um pouco e rir. Ríamos mais, porque afinal de contas era um tipo gozador. A uma aluna que se aborreceu porque ele dissera que não gostava de ir ao teatro, e perguntou qual era o motivo disso, respondeu: "Porque não gosto que gritem comigo".

Produziu uma edição cuidadosamente anotada da Odisséia, de Homero, traduzida por ninguém menos do que Odorico Mendes (e ilustrada por ninguém menos do que o pintor Enio Squeff), que é um dos livros mais importantes de tradução de poesia já publicados nesta língua. Traduziu Hölderlin, publicou poemas autorais incrivelmente divertidos (conheço seu pequeno volume chamado graciosamente Idéias), e uma tradução do Cântico dos Cânticos.

Essa tradução tem uma história, natürlich: éramos então moleques que estudavam literatura pelo gosto da coisa, e éramos também escritores. Havia algum tempo nos reuníamos em um sebo na rua Líbero Badaró para lermos nossos poemas para um público crescente. Quando esse público chegou a um número considerável, João Eduardo Oliveira e Cídio Martins, dois dos meus amigos, tiveram a idéia de montarmos uma coleção de livros artesanais. Um deles, a única tradução que publicamos, foi a do Cântico dos Cânticos, primeira edição, bilíngüe, com os versos em português de Medina (que seria depois publicada em edição da Hedra).  

O prefácio foi escrito por Adriano Scatolin, hoje professor de latim da USP, e me lembro de uma ocasião em que eu & Scatolin estávamos em uma das salas da Faculdade de Letras, à tarde, revisando o texto com Medina. Foi uma tarde fascinante, em que certamente aprendi mais do que em todo um semestre: era preciso resolver tudo, e íamos verso a verso. Quando discutíamos algumas das soluções, Medina simplesmente soltava de cabeça e de imediato três ou quatro versões possíveis do mesmo verso, já metricamente em português (ele traduziu o texto em redondilhas).

Medina tinha um ouvido notável, e uma sensibilidade verdadeiramente poética para aliterações e paronomásias, além de uma concentração que produzia de imediato soluções variadas, que ele sequer se ocupava de anotar. Uma vez que tivesse apreendido o sentido (inclusive formal) de um verso, ou de um conjunto de versos, não parava mais para pensar, compunha na mente o desenho e o dizia límpido, precioso.

Lançamos o livro na Casa das Rosas, que era na época dirigida pelo artista plástico José Roberto Aguilar, com a colaboração sempre inestimável de outro amigo muito saudoso, morto neste mesmo ano de 2013, Ilo Zema Codognoto, com quem também fiz um programa de entrevistas na rádio CR37, da Casa das Rosas, e no qual também entrevistei, entre outros, Antônio Medina Rodrigues.

Então, para prestar os meus respeitos a esses dois amigos, posto aqui duas fotos que registram o lançamento em 1999, com Adriano Scatolin, com a entrevista incidental que fiz com Medina ali mesmo, e Ilo na câmera.

Adriano Scatolin em pé, eu, e Medina assinando o Cântico dos Cânticos,
na Casa das Rosas, 1999.


Medina, eu e Ilo Zema na câmera.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

courage de luxe



courage de luxe



o mesmo deus que te deu tuas leis em conserva papai mamãe

te deu as bichas os viados as sapatas

deu os computadores e as pragas do egito

deu-te mãos e pés e um corpo perfeito

ou deu-te uma série de defeitos na metafísica e no corpo

o mesmo deus que te dará ao pó e que te deu

a bomba em sonhos floridos do pecado de oppenheimer

e que deu a chave para as portas e as metáforas

o deus que se deu o nome acaso ou que se deu

todas as imagens ou o vácuo geral numa explosão sem som

no centro do universo

o deus que te deu tua estupidez crassa que se arrasta

de tua mente como os braços de um orangotango

que te deu paris para parires um asno às ruas

um asno a que deu o barrete frígio e frigide barjot

esse mesmo deus um só e muitos

de um só nome e muitos

que te deu a pátria o exército hippies desertores

a bolsa de valores e os brinquedos da ciência poetas e platão

ele que lembrou de te dar uma religião para brincares de deus

deu-te a água pura e cristalina e poluição

doce veleidade romântico-amorosa um pau uma buceta

ou deu-te os dois e pôs-te albino como um deus em um triclínio

o deus que deu o desejo e o desânimo o intelecto as mãos juntas de uma prece

a sublimação que deu ao dar-te trepar ou pensar como opção

esse mesmo que se deu um nome de mulher primeva gaia a alegre

esse deus que deu o sexo dos anjos como jogo de dados

que jogava e joga bem ao dar-te a dúvida

o deus que recebeu empédocles no buraco mais quente da terra

mergulhado com a coragem de foder montanhas e o deus

que deu o cristo de presente para a cruz

que te deu sua imagem e semelhança

é bom lembrar: deus gosta de dar.



segunda-feira, 8 de abril de 2013

IRON MAIDEN



Vivemos tempos deprimentes.

Ninguém (nem eu) acha graça na morte de uma pessoa, mesmo se essa pessoa for Margaret Thatcher. Morte é desagradável, para nós que vivemos e queremos viver. Mas a atitude de capacho que todo mundo adota no momento em que um nome tão infame da política morre é incompreensível.

Entre saudações protocolares e sentidas comiserações, temos quase que unanimidade se esquecendo do terror institucional que o longo governo dela (como o de outros em outros lugares) significou; daquilo que é o seu legado de fato.

Então estou lembrando que ATÉ o Iron Maiden acusou a política de brutalidade, preconceito, provincianismo e autoritarismo daquela que teve seu apelido heavy metal (depois eles fariam as pazes). Os EUA tiveram Reagan na mesma época e nós, que nunca queremos ficar atrás no pior dos mundos possíveis, vivíamos ainda na ditadura.

Lembrar o que o grande inglês Alan Moore escreveu sobre Thatcher:

"Estamos em 1988. Margaret Thatcher inicia seu terceiro mandato no cargo e fala com confiança de uma liderança conservadora que entrará mesmo no próximo século.  Minha filha mais jovem tem sete anos e os tablóides circulam a idéia de campos de concentração para pessoas com AIDS. A nova tropa de choque usa visores pretos, assim como seus cavalos, e suas vans têm câmeras rotativas de vídeo no topo. O governo expressou o desejo de erradicar a homossexualidade, mesmo como conceito abstrato, e pode-se especular qual será a próxima minoria a se legislar contra. "

Parte do que Moore engendrou como resposta artística desde cedo foi V for Vendetta (V de Vingança). Não o filme banal dos bobos Wachowski, mas a HQ obra-prima.

Nesta nossa época, não: estamos convidando enfaticamente todo conservadorismo, todo autoritarismo, toda repressão  a voltar, sentar na poltrona da sala, passar o dia e ficar, se quiser, anos a fio. Ouvimos (se ouvimos) quase nenhuma voz desafiando o coro dos contentes com esse estado de coisas.

Andamos ignorantes, violentos, medrosos e preconceituosos. Nos EUA, querem a cabeça de Jim Carrey porque ele OUSOU fazer um (aliás hilariante) episódio cômico-musical zombando da NRA (National Rifle Association) e da figura louca e überparanóica de Charlton Heston, famoso riflemaníaco, porque entrou com esse ato de comédia na discussão sobre a regulamentação da posse de armas no país, que tem tido massacres rotineiros de psicopatas armados até os dentes. Em resumo: as pessoas preferem continuar com os casos de assassinatos múltiplos para ter o direito de esconder em casa uma metralhadora de cem tiros por minuto just in case.

E Meryl Streep, ah sim, defendeu seu filmeco oscarizado sobre a dama de ferro dizendo que foi mulher exemplar, forte, uma figura de liderança mundial. Pode-se dizer o mesmo de qualquer tipo de tirano, são características muito vagas e genéricas. Exemplar pode ser do que não se fazer; força pode ser excessiva e mal-direcionada; liderança costuma ser a cenoura diante dos burros em massa. 

O mundo está se tornando um lugar careta, com cada centímetro de seu espaço físico e mental loteado para lavagem mental. Reduzidas a zero de capacidade minimamente crítica, as pessoas agora gostam desse circo, gostam dele até o monstro que criaram pisar em algum calo mais coletivo.

Mas daí, como de costume, será tarde demais para a chiadeira geral que termina sempre em lamúrias da seguinte categoria: "Como chegamos a isso?", perguntam os novos inocentes, que parecem não saber o que aconteceu, nem onde começou, nem a responsabilidade de quem foi. 

A violência anárquica, simbólica e irônica de Derek Riggs ao desenhar Eddie apunhalando Thatcher  parece inofensiva (também a de V, domesticada no filme dos Wachowski), com essa distância, diante do triunfo de uma violência efetiva e real a que hoje todos tiram os chapéus servilmente.

Oh dear, como eu disse certa vez por pura graça, espremido por uma multidão num elevador da estação de Goodge Street, do metrô de Londres, a que uma elegante senhora inglesa das antigas respondeu: Oh dear, indeed.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

KARINA BUHR + PREENCHENDO O VAZIO DA CRÍTICA



Pra começar: uma geral (bem geral) no rock deste país

Sim, o rock é música estrangeira. Mas arte não tem pátria nas trocas intelectuais: o jazz americano foi valorizado antes na França (e dizem que Jean Cocteau, o multihomem, tocou bateria nuns happenings de jazz por lá, nos anos 20), como também a França recebe melhor alguns dos cineastas mais finos dos EUA (Woody Allen, David Lynch), soube entender melhor um inglês (Hitchcock, que sem os cineastas e críticos da Politique des Auteurs ainda seria visto nos EUA apenas como o rentável “mestre do suspense” comercial) e recebeu melhor aquele indivíduo mórbido, Edgar Allan Poe, no final do XIX, com Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, etc. Recebem, reinventam. É sempre assim.

E nem precisaríamos sair da poesia ― a arte em particular deste escriba ―, basta pensar na onipresença do soneto petrarqueano no mundo ocidental por no mínimo uns 4 séculos.

Há pilhas de exemplos por todo lado: vocês se servem sozinhos. Voltando.

Nenhuma referência à Divina Comédia passará despercebida

O Brasil já teve e tem coisas notáveis: os Mutantes (sobretudo influenciados pelos Zombies) foram uma experiência inventiva que influiu numa boa quantidade de músicos também inventivos no mundo do rock, incluindo nisso Kurt Cobain (RIP), que falou deles numa já – quem diria? – antiga entrevista para a MTV; a mesma coisa vale para parte do que fizeram os Secos & Molhados, cuja contribuição ultrapassa em muito a influência cosmética decisiva para a maquiagem de Paul Stanley, Gene Simmons e o resto do Kiss. Como todo mundo sabe, a combinação de Paulo Coelho e Raul Seixas também funcionou como uma máquina exata, a despeito do fato de que provavelmente Seixas é o equivalente nacional de Elvis Presley, ao menos quanto aos bizarros sósias que ambos geram ainda hoje, e sabe-se lá por mais quantos séculos.



Não se faz mais capa como antigamente

Isso quanto aos anos 60 e começo dos 70, do século que já começa a ficar na poeira da memória. Acrescentaria que, sintomaticamente, Maria Bethânia, em 1965, quando cantou “Carcará”, estava imbuída do mais legítimo espírito rock’n’roll. Havia uma secura bruta e boa em “pega, mata e come”. E eu, que comecei tudo isto apenas para chegar a Karina Buhr, já vou logo aproximando a sua “Nassíria e Najaf” desse aspecto de poética denúncia de atrocidades, que tinha em “Carcará” um exemplar destinado a se imprimir na cera da memória. Os anos 60 realmente foram um vórtice para a arte, mas muitos dos que o produziram não sobreviveram às próprias invenções.

Itamar: "que tal o impossível?"

Aquilo que se chamou “vanguarda paulista” teve dois tipos que deveriam ser mais famosos: Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé. Assumpção, por todos os motivos que alguém quiser declinar: letrista absolutamente ímpar, instrumentista ousado e inspirado, artista com vocação profundamente crítica e cheia de humor, além de performer magnético. Era simplesmente um furacão humano que morreu ainda jovem, aos 53 anos (e continua jovem); Barnabé teve o auge, na minha leiga & modesta opinião, logo no começo da carreira, com Clara Crocodilo (1980) e Tubarões Voadores (1984). Não apenas as letras são furiosamente loucas e satíricas, mas o conceito daqueles álbums ia das HQs ao virtuosismo orquestral do rock de Frank Zappa (com quem, aliás, Barnabé partilha também o humor anárquico).


"Vê se tem vergonha na cara/E ajuda Clara, seu canalha".

A leitora & o leitor terão a bondade de notar que não estou argumentando. Não estou, evidentemente, citando todo mundo. Estou chamando de memória alguns pontos altos que me parecem fazer sentido contextualmente ao que vou dizendo, ao que me interessa definir sobre rock e sobre uma postura de inconformismo que o gênero tem ― ou deveria ter por pressuposto, na opinião deste poeta. E como isso costurou a história da música de modo mais ou menos marginal no Brasil. A guitarra elétrica, por exemplo, era uma questão política quando Caetano Veloso e Gilberto Gil a incorporaram, sendo que, de qualquer forma, Sérgio Dias e Arnaldo Baptista já eram adeptos da coisa e defenderiam seus amplificadores (valvulados) sempre. A encrenca se deu por gente prototipicamente “MPB” (o rótulo flácido) começar a se engraçar para um lado Jimi Hendrix.



Mais tarde os Titãs, com Cabeça Dinossauro (1986), fizeram um marco de disco importante que partilhava um ambiente onde já havia punk e heavy metal acontecendo (basta lembrar que Schizophrenia, o segundo álbum do Sepultura, thrash e speed metal, sairia logo no próximo ano). Se a gente pode dizer que os Titãs fizeram o seu melhor lá, o Sepultura faria o seu dez anos depois, em 1996, com Roots. No começo a banda pode-se dizer que soava como Slayer e coisas do tipo, mas, com Carlinhos Brown e Olodum (e o ótimo Mike Patton), geraram uma coisa específica.



Mais complexo ― e próximo do meu assunto ― era o caso de Chico Science e Nação Zumbi. Já em 1994 eles misturavam rock; Tropicália; as peculiaridades indescritíveis de Jorge Mautner e sua rabeca; maracatu (vindo das congadas); e a tradição do Movimento Armorial, de Ariano Suassuna; tudo no que chamaram Manguebeat. Havia até o “Manifesto dos Caranguejos com Cérebro” (há caranguejo de monte no mangue, como sabeis), para mostrar como se levavam artisticamente a sério, embora fossem uns debochados. O último rebento da mais que centenária árvore dos manifestos? Chico Science era um desses tipos com poderes catalisadores, e à sua volta moveu não apenas a música, mas a moda, o comportamento, a literatura e mesmo a arte do videoclip: morto cedo demais, em acidente de carro em 1997, meros 3 anos após o lançamento do disco que o fez famoso. O Nação Zumbi continuou com Jorge Du Peixe assumindo vocais e letras, e a guitarra sempre excelente de Lúcio Maia.

Karina Buhr: arte, eletrificada 

Karina Buhr e a modalidade rock'n'roll de lançamento de microfone.

E então apareceu, já há 3 anos (2010) Karina Buhr, baiana & pernambucana. É singular esse aparecimento, porque qualquer um poderá sentir na sua música o mesmo poder de estremecimento ouvido no melhor dessa história sumária, e sobretudo incompleta, do caminho errático do rock no Brasil. Ela é “agora”, mas, como todo agora, um agora com história: da banda Comadre Fulozinha ao teatro de Zé Celso ― participou como atriz da montagem das Bacantes, de Eurípedes, no Teatro Oficina, de onde talvez venha parte do extraordinário jogo físico que faz dela uma frontwoman enérgica e única ― sua música e sua experiência, como a de vários citados acima, ultrapassam o rock, mas seria ingênuo não considerar as suas definitivas contribuições (uma delas ― não pequena ― foi dar a Edgar Scandurra a perfeita oportunidade de oferecer sua guitarra talentosíssima a uma compositora, cantora e performer incomum).

Lançou já Eu Menti pra Você (2010) e Longe de Onde (2011). Sua banda é excelente: precisa, inventiva, forte. Fazia um tanto de tempo que não apenas não se ouvia algo novo na música brasileira, e algo tão bom de pensar como letra, quanto de ver como show e ouvir como música. Essa é a mística nada simples que exige a existência da música de Karina Buhr, que apenas vim a conhecer casualmente, já que não assisto à TV faz quase dez anos e não leio jornais há mais ou menos o mesmo: de bobeira, algum tempo atrás, esbarrei no vídeo de “Cara Palavra” na MTV, clip muito simples e efetivo que tem o dom de registrar toda a alta voltagem da música e da performance de Karina Buhr.

Creio que é evidente a qualidade poética de suas letras: porque, talvez por influência da poesia concreta (& de outros tipos de poesia), está atenta à forma das palavras + seu sentido, que ela revira e fazer produzir mais sentido, ou, digamos, aquele sentido das palavras sob o seu significado morto de dicionário, seus sentidos vivos, latentes e potenciais. Explora diferentes significados de uma mesma palavra (“Não precisa me procurar”), ou faz uma palavra se geminar de outra (“Cara Palavra”, que tem um monte de outros procedimentos), ou ainda faz substituições muito engenhosas (“A pessoa morre”, basta ver a simples e sutil inteligência no uso de “verbo” lá). Estou certo de que muitos subestimam a letra no rock, mas os melhores nisso são letristas poderosos (p.e., o exemplar Thom Yorke), até porque, por princípio, a gente só deveria dizer alguma coisa quando tivesse alguma coisa a dizer. Karina Buhr é uma artista completa e rara: é a música, a letra, a performance, tudo concatenado.

Não se deve subestimar a chegada de uma artista desse calibre. E é importante ouvi-la, se por nada mais, pelo bem dos nossos ouvidos. Mais aqui:

http://karinabuhr.com.br/novo/

"Vazio na cultura brasileira": um rastro viscoso


Ouvi dizer que algum sem-noção escreveu “o vazio na cultura brasileira”. Seja quem for, não foi o primeiro a dizê-lo (nem será o último).

É o que a falta de curiosidade e/ou conhecimento costuma dizer (seja no jornalismo, nas empoeiradas cátedras universiotárias, nos livrinhos moles de crítica temerária, que nunca duram) em toda época que faz uma revolução na arte.

Essa revolução está acontecendo hoje; como sempre, subterrânea no início. Depois virão os cricríticos que dirão o “eu já sabia”, o moi aussi dos covardes genuflexórios: basta lembrar que o antes vituperado Mário de Andrade, ah-ham,  modernista, virou hoje na boca dos cricríticos uma espécie de totem, religiosamente incensado, praticamente inquestionável. Outros, agora vistos a distância, a mesma coisa.

Na poesia, desde meados da década de 1990, as coisas começaram a se modificar: há novos tipos de experiência no verso e fora dele (que ainda não foram lidas com refinamento crítico), na performance (que finalmente tem se tornado uma arte sólida por aqui), em vídeo-poesia, etc. Seus praticantes, muitos deles ignorados neste seu país de origem, já recebem reconhecimento no exterior, como costuma acontecer em meios provincianos: lá primeiro, depois aqui.

E, como assinalei acima com um exemplo particularmente notável da música, não acontece só na poesia, que vive um momento tão bom que só se compara ao modernismo e às vanguardas dos anos 50-60. Uma breve e incompleta lista, de poetas com poéticas diversas, para os curiosos:

Eu, Ricardo Domeneck, Érica Zíngano, Fabiano Calixto, Paulo Ferraz, Angélica Freitas, Marcus Fabiano Gonçalves, Ana Rüsche, André Luiz Pinto, Marcelo Sahea, Érico Nogueira, Guilherme Gontijo Flores, Eduardo Sterzi, Ismar Tirelli Neto, Juliana Krapp, Rodrigo Lobo Damasceno, Rodrigo Madeira, Fabiana Faleiros, Fábio Aristimunho Vargas, Iuri Pereira, Fabrício Corsaletti, Danilo Bueno, Veronica Stigger, Rodrigo Ponts, Gabriel Pedrosa, Marco Catalão, etc.

Fora os poetas importantes, imediatamente anteriores aos de cima, que ainda não receberam sequer 1/4 da atenção que merecem. Alguns, para exemplo: Ricardo Aleixo, Horácio Costa, Marcos Siscar, André Vallias, Donizete Galvão, etc. etc. etc. (e sequer menciono aqueles já amplamente reconhecidos).

Em todos lê-se não apenas uma poesia que já produziu obras autorais transformadoras e inevitáveis, como também ensaios que determinam já aspectos da leitura de poesia e literatura (ou mesmo artes). Entre todos esses há também alguns dos melhores e mais profícuos tradutores de poesia e literatura no Brasil, e juntos disponibilizaram, com seu trabalho, uma biblioteca inteira de várias línguas de literatura estrangeira em português.

E a minha lista acima cita apenas alguns nomes. Os nomes citados nela ainda teriam outros nomes tão bons a lembrar: é muita coisa diferente e estimulante acontecendo ao mesmo tempo.

E nem falei de prosa. E sequer falei de outras artes (é possível produzir coisa igual em cada arte que se escolher). E só no Brasil.

O que eu poderia querer? Boa parte (sabe-se que não são todos) do jornalismo quanto da crítica literária mal tem idéia do que se passa no resto do mundo, nas artes. Nunca se educaram. São caracóis: vivem dentro de uma concha, saem às vezes para xeretar fora, timidamente, andam milímetros e voltam pra segurança da concha. Nem chegam a conhecer o seu quintal, cansamos de esperar que cheguem onde já estamos.

E deixam sempre, por onde passam, aquele rastro viscoso: sempre sabemos por onde passaram.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

FELIZ ANO-NOVO

Depardieu, ao cruzar a fronteira da Rússia


Na França (ou Rússia).


Gérard Depardieu se tornou cidadão russo. Diz-se que o aceitaram com base no mesmo teste que a polícia francesa utilizou para prendê-lo quando, desgovernado, bateu com sua scooter e balbuciou palavras sem sentido a um policial.

Depardieu, já russo, louvou a exemplar democracia de seu novo país, afirmando que a oposição a Putin devia calar a boca, e, para exemplificar o que queria dizer, elogiou a prisão de trabalhos forçados a que foram enviadas as garotas do Pussy Riot.

Brigitte Bardot disse que também vai se tornar russa, e isso por causa dos maus tratos que os franceses têm dispensado a um elefante. Não Depardieu, um outro.


Patriot, with proud button and flag, NYC (1967), por Diane Arbus

Nos EUA.


O povo estadunidense está chocado com os incidentes horripilantes envolvendo atiradores assassinos em escolas e cinemas no país. Decidiram que está na hora de o governo fazer alguma coisa com a situação das armas, isto é: facilitar ainda mais o acesso a elas, para que as pessoas de bem possam enfim se defender comme il faut.


E o povo estadunidense está também chocado com as crises econômicas assolando o país e empobrecendo grande parte da população, enquanto muito poucos concentram fortunas cada vez maiores (os brasileiros se perguntam o que é que há de errado nisso). O presidente Obama então sugeriu taxar as grandes fortunas com um imposto de renda progressivo. A população quer sair às ruas contra o presidente Obama, porque ele está claramente tornando impossível aproveitar a fortuna que alguém porventura venha a amealhar como fruto do trabalho.



Onde se lê "Ordem & Progresso", leia-se "Fechado para balanço"

No Brasil.


Não se pode dizer muito, que o ano ainda não começou. Começará, ao que dizem, a partir de algum momento na segunda quinzena de fevereiro, ou logo no início de março, mais tardar.