sábado, 22 de janeiro de 2011

o gerente de gravata vermelha

Detalhe de Le Fils de L'Homme (1964), de René Magritte


o gerente de gravata vermelha
adentra ao meiodia
as dependências do restaurante
no cj. nacional.

o gerente de gravata vermelha
veste um risca-de-giz cinza frio,
cabelos laqueados cosa nostra
e um ar neutro, impecável.

as garotas conversando a seu lado
riem com lábios suculentos,
mas o jovem gerente de gravata vermelha
é um asceta do almoço:

separa com cuidado a carne
do osso : e sob os olhos boiando
nos globos brancos
mantém uma indiferença de metal.

magro, de cartaz ermenegildo zegna,
o polido gerente de gravata vermelha
é um estóico da mastigação.
comenta algo, sucinto e de lado,

e observa as mãos guiando os garfos.
o guardanapo cesura o labor
das mandíbulas; nenhum ardor
sublinha seu sorriso clerical.

a gravata vermelha, única exclamação,
pendurada no fino pescoço,
o enforca : e dizem que os enforcados
têm uma ereção.

domingo, 9 de janeiro de 2011

OVÍDIO, MAS SHAKESPEARE (& O GLOBE THEATRE)

O palco do Globe atrás de mim: não é apenas um teatro, é outra coisa

Já me perguntaram quem eu achava o melhor poeta.

“O melhor poeta”, ponto.

A resposta a essa pergunta esbarra em duas notórias impossibilidades: 1) a de que haja um poeta tão completo q a mera menção de seu nome signifique tudo o q a humanidade possa ter desejado representar com a poesia; 2) a de q eu pudesse saber tanto, & em tantas línguas, q desse conta de fazer surgir o nome brilhante logo após a pergunta.

É uma pergunta impossível.

Não obstante, respondo q, na tradição ocidental, me parece q Ovídio não tem rivais. É uma resposta q convida a Polêmica, deusa suscetível. Traduzi pedaços das Metamorfoses quando era sutilmente mais jovem (& talvez por esse mesmo motivo: os jovens acham q podem fazer qqer coisa) & levava o latim com tinta ainda fresca na minha memória de estudante de Letras.

Nessa operação delicada descobri uma habilidade inventiva infinita, apegada a seu material narrativo & a formar versos q não saem da sua cabeça uma vez lidos. Truques engenhosos, antipatias históricas divertidas (Ovídio detestava o idiota do Aquiles) & o resultado é um poema q foi referência para TUDO o q veio depois, seja pintura, escultura, poesia, prosa, preceptiva, repertórios de discurso figurado, etc.

E é por Ovídio q chego a Shakespeare. Master William talvez tenha sido o poeta q mais aprendeu com o poeta lúbrico de Sulmona. Inúmeras ocasiões de citá-lo, parafraseá-lo, homenageá-lo & tudo o mais se encontram na obra daquele simpático inglês (há controvérsias encantadoras sobre isso) q entendeu a tola humanidade sem usar, naturalmente, o adjetivo depreciativo com q ornei minha descrição. Shakespeare não julga, ou julga pouco: eis a famosa ambigüidade de suas peças q permitem ao cavalheiro & à dama pensarem o q bem quiserem (as you like it) dentro daquelas horas de cuidadosas & complexas relações humanas redigidas em verso & prosa juntamente.

O Shakespeare de A Midsummer Night’s Dream, ou de The Tempest, é obviamente um poeta & um dramaturgo sem rivais, considerando a combinação das duas categorias. Naquelas peças todo artifício possível às duas artes é aplicado com um nível de sutileza & maestria q, se os leitores quiserem, poderão pensar comparativamente em alguns dos últimos quadros de Velázquez, quando a arte do espanhol é tão completa q ele inventa um tipo pessoalíssimo de pincelada, coisa translúcida em parte, em parte ostensiva, & sabendo onde cultivar o detalhe, onde insinuar a forma apenas com manchas.

Se Velázquez pensava a realidade como tinta — ou, melhor dizendo, propunha como a materialidade da tinta via o mundo —, pode-se dizer o mesmo do domínio poético de Shakespeare, do seu modo de escrever verso, ou mesmo de se concentrar no mínimo artesanato de posicionar palavras numa sentença SEM parecer q o faz. Poucos artistas vivem o suficiente para q sua arte nos dê o presente de vermos surgir no homem (ou na mulher) essa segunda natureza de uma arte.

Na maior parte dos bons artistas, & mesmo dos grandes, temos a compreensão do mecanismo de produção de determinada arte elevada a um grau de complexidade q deixa o observador perplexo - como se diante da mais intrincada tapeçaria -, mudo de expressões q valham o q vê; mas o brilho dessa compreensão da vida, q se transforma numa arte sem pontos visíveis de costura, é apenas para um raro & seleto grupo de artífices. Shakespeare é um deles. Da Vinci, qdo deixa um técnico de raios x deslumbrado com o fato de q não tem como explicar como foi aplicada a tinta (sem vestígios de pincelada em um de seus quadros) atesta isso, ao dizer: “o melhor q posso fazer é sugerir q a tinta foi pulverizada sobre a tela”.

Ver o Globe, teatro reconstruído nos moldes daquele velho teatro do final do século XVI, em q várias peças shakespeareanas foram encenadas, mostra q o lugar propiciava parte do desejo & da necessidade de inventar aquelas coisas. Era um teatro rústico, aberto no alto, de onde chovia no público q não podia pagar pelos lugares cobertos, mas q necessariamente entrava muito mais no espetáculo, ao ponto de jogar uns legumes nos atores qdo não ficava muito satisfeito.

Com um ambiente como esse, uma audiência tão variada & caprichosa, é realmente curioso reimaginar a escrita dramática de Shakespeare, ou mesmo o q ele pensava q fazia ao inventar & redigir seus versos. Sabemos, por prova documental, q são ao menos dois os tipos de texto dramático: um, para ser texto impresso; outro, para uso dos atores & da companhia teatral. Esse último é mais modesto como texto, muitíssimo mais prático para efeito de representação. Era, por assim dizer, um texto enxuto e técnico.

Pode-se pensar q era o texto em q se mexia milhares de vezes (embora Ben Jonson tenha escrito, sobre o colega mais velho, q ele nunca havia blotted out a line, & de q pensava: ah, se ele ao menos houvesse rasurado um milhar), antecipando a psicologia do público & suas reações, manipulando essa casa (q era, nas metáforas do séculos XVI & XVII, um mundo, ou de modo paralelo, revertia o mundo em teatro) para os efeitos desejados.

Necessariamente, um grande laboratório: era ver diariamente como as pessoas reagem às diferentes experiências, ou como o drama extraía de cada um uma emoção, ou como poderia torná-las alheias; como determinada canção tinha o dom divino de impor docemente uma inevitável solenidade (como talvez a mais bela canção shakespeareana, “Fear no more the heat o’ the sun”, faz em Cymbeline).

Visitar o Globe no inverno, fechado à apresentação de peças, numa tarde em q os músicos atores da Gabrieli Consort fizeram essa mesma maravilhosa manipulação educativa das emoções (& ator Peter Hamilton Dyer costurando canções q vinham de Chaucer, passavam pelo século XVI & XVI & chegavam a Thomas Hardy), empregando a técnica da palavra cantada, é algo a lembrar, & algo q nos devolve à grande arte de Shakespeare, com novas respostas & novas questões.


O céu, visível além do teto sobre o palco