domingo, 28 de outubro de 2007

Penderecki & o feitiço auditivo

O compositor polonês Krzysztof Penderecki

A experiência mais assombrosa (& mais profundamente deleitosa) que já tive com música foi na Sala São Paulo, num recital de vozes que incluía no programa um trecho de The Seven Gates of Jerusalem (Sinfonia número 7), chamado De Profundis.

O coro de vozes foi escrito com tamanha ciência e delicadeza que era possível, por vezes, sentir nos ouvidos como que uma onda sonora fluindo de um lado para o outro do coro, dominando o sentido da audição como uma espécie de feitiço. Ou, quando as vozes graves sustentassem um trecho, despontaria, brilhante, um agudo do outro lado. Coisas desse tipo, que não paravam de surpreender & agradar os ouvidos.

Ridículo, talvez - como todas as pessoas atordoadas por imenso prazer costumam ficar - estava acompanhado dos mais circunspectos amigos Marcus Siqueira e Maurício de Bonis, que são músicos excelentes (Marcus Siqueira, por exemplo, tem um Fricamentum Punctatim que é uma obra simplesmente poderosa & indescritível).

Eles viam a minha surpresa e diziam: "é, é bonito". Mas eu não tenho como mentir: foi uma experiência mística para mim. Quase me saíam lágrimas dos olhos.

É, lembrei disso, & achei que seria justo & oportuno prestar essa discreta homenagem a Penderecki (por quem tenho imensa admiração & imenso respeito), talvez mais famoso por ter algumas de suas composições integrando trilhas sonoras de filmes do impecável Stanley Kubrick, como The Shining (O Iluminado).

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

4 poemas

O Sonho de Constantino, de Piero della Francesca

Durar & Permanecer

É preciso esquecer para lembrar:
o tempo nos acossa com a multitude
que os olhos sem distingüir desfiguram;
do peso da terra de séculos ressurge
o deus faraó envolto em cinzas e pó;
da têmpera em cacos,
a fagulha do anjo no sonho de Constantino.
Tudo surge para derreter e partir,
como um sonho que aperta
resquícios do dia num redemoinho
onde andamos não raro suspensos
entre ignorar e saber.
E isso é história: a sombra retorna,
sussurra seu nome em bocas futuras
e mesmo dirá fuit hic: apenas memória.


A Burocracia dos Nervos

dopamina & serotonina
duas garotas que dão o que falar
grávidas sempre grudadas
na tua cabeça em algum lugar

quem fez o maldito buraco
se nem sangue nem cérebro
saem?
roxo e negro cauterizados
bípede espanto
com um tiro de estupidez
na negra floresta do crânio

cabeça-canhão
& orfanato de idéias
a burocracia dos nervos
proíbe sentir e saber

gêmeas amigas
Sentir & Saber?

homem com furo no crânio
ouriço de estanho
homem-traste
só quer o carimbo “viva”
na testa
e que o vento o arraste.


As pessoas só estão assustadas

As pessoas só estão assustadas
não houve tempo e você sabe
as cenas se desenrolam sem um ensaio
sem sequer um roteiro
as pessoas pegam o que têm à mão
se você olha de longe pode perceber o medo
e o em si mesmo curiosamente animal das pessoas
a dúvida o ódio ou o amor incontidos
ou aquilo que guardam para um choro implacável
que arremessa seus peitos num desfiladeiro de paixões confusas
soluços e lágrimas
as pessoas trapaceiam matam ajudam espontaneamente
olham com ternura desprezam se irritam num instante inexplicável
perseguem e podem ser auto-complacentes
podem apertar a sua mão abraçar como pólipos
desejar muitas coisas em segredo que jamais vão conseguir
o palco é muito grande e muitos se sentem desconfortáveis
contam histórias inventadas tentando enganar o tempo
acreditam em coisas estúpidas com fervor às vezes comovente
às vezes apenas horroroso
& às vezes demonstram uma beleza que fere os sentidos
para você jamais esquecer que o pouco ainda é muito
no cômputo geral de tudo
ou quando você é incapaz de admitir o sentido do pequeno incidente
no desenho invisível de linhas harmoniosas como a música


sinopse.

o que seria da vida humana sem os adjetivos.
rilke tem uma frase sobre algo a ver com tudo isso &
por plutão
yo no quiero acordarme.

inefável cansaço.
tenho 100 anos & quero me esquecer.
estalar os dedos ou franzir o nariz magicamente.
o truque do desaparecimento.

cortinas e alçapão.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

CORREDOR LITERÁRIO

Nesta última terça-feira eu, Mariana Ianelli, Alexandre Barbosa & Rodrigo Petronio fomos convidados pela Academia Internacional de Cinema (AIC) a ler os nossos poemas e discutir o tema do lirisimo no mundo contemporâneo, dentro do Corredor Literário da Paulista, no auditório do Museu de Arte de São Paulo (MASP). A mediação foi da também poeta Flávia Rocha, que leu & comentou.

Para mim, "lírico" é um nome residual que cedemos à poesia com forte acento pessoal e emocional, porque a origem do termo era a do acompanhamento à lira.

Não digo "residual" porque nos falte aquele velho instrumento de coçar cordas, mas porque o princípio da coisa era a musicalidade. Motz el son, entre os provençais, "as palavras e o som", num amálgama indissociável. Os galego-portugueses como Afonso X, o Sábio, são exemplos disso, ou o clérigo aragonês Martim Moya em seu sirventês da "crerezia".

Poderíamos pensar também em Safo de Lesbos, Ovídio (vocês já devem estar cansados de me ler martelar esse nome nunca assaz louvado), as canções das peças de Shakespeare & até mesmo o lírico ímpar & tardio que foi Paul Verlaine (leiam um poema como "Colombine", por exemplo, é impossível não cantar).

Mas é evidente que essa é uma opinião recessiva. Os quatro ótimos colegas com quem tive o prazer de dividir uma noite de belas leituras & boas risadas ouvem através de Canetti, Rilke & de si mesmos uma música do pensamento que nunca cessou de acompanhar uma experiência que chamam lírica.

Ótimo debate. Aqui vão algumas fotos que a bela Andrea Mateus bateu do encontro.

Mariana Ianelli lê um poema, eu mantenho a encadernação aberta & Flávia Rocha observa a operação

Rodrigo Petronio lê inéditos


Flávia & Rodrigo engajados no debate

Mariana, hierática

Alexandre Barbosa lê um de seus belos poemas. Já tem uns cinco livros publicados, o rapaz. Publicamos juntos uma vez: eu o Descort, ele o Azul Escuro (e Fabrício Corsaletti, que formava o trio da Preguiça Editorial, O Sobrevivente).

Alexandre não consegue acreditar no que está ouvindo, Mariana considera com paciência & eu tagarelo

Il Penseroso

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

FAMA IMMORTALIS



Na palestra que dei semana passada na Faculdade Oswaldo Cruz uma aluna perguntou, a certa altura, por que na tradição da língua portuguesa havia triunfado um modo queixoso & murmurante ao invés do modo crítico & do assertivo.

Eu falava sobre a tradição, o "cânone", ou como queiram chamar os vultos, que assim defini na página do Thesaurus deste mês, dentro da revista digital Germina: "todos os escritores importantes estão mortos; todos os mortos são sombras; toda sombra é um vulto; todos os escritores importantes são vultos".

Respondi a ela uma porção de coisas tentativas, porque sua pergunta era mesmo muito boa: o fato de que nós detestamos o "não"; o catolicismo, que implica contrição, sofrimento & amargura para salvar a alma tão pecaminosa; o sebastianismo residual, que lamenta sempre uma condição de devir. Etc.

Tudo isso pode ser encarado como parte da questão.

Mas hoje a resposta mais simples, verdadeira & objetiva que se pode dar é: não lemos as Metamorfoses, de Ovídio. OU, quando lemos, lemos mal. Esse é um dado muito importante, explica a tacanhice de ATÉ HOJE não termos uma tradução completa & minimamente decente, do ponto de vista do verso, para o longo poema.

(O poema tem dois mil anos & uns quebrados, apenas para mantermos alguma idéia de proporção & perspectiva no assunto).

Mais uma contribuição para a solução futura do dilema: ofereço a minha tradução do epílogo do poema, no livro XV, em que Ovídio se volta para o leitor com sua própria voz.

Num lance de modéstia involuntária (porque Ovídio realmente não sofria dessa espécie de hipocrisia), ele vaticinou que seu poema duraria até quando houvesse Roma dominando o mundo. Daí, interpretei o vivam do final, pondo Ovídio em circulação novamente.

Das Metamorfoses

(XV, 871-875): EPÍLOGO

A obra agora se encerra, e nem a ira de Jove
nem ferro nem fogo,
e nem o tempo voraz poderão destruí-la.
Quando quiser venha o dia,
que força não tem a não ser sobre o corpo,
em que se ponha então fim
ao meu cálculo incerto dos anos:
Ainda, o melhor do que sou
perene estará entre as altas estrelas,
e o meu nome, indelével.
A toda parte onde estenda
Roma o poder sobre as terras,
os lábios lerão minhas palavras;
e sob a Fama por séculos,
se vale o presságio de poeta:
Estou vivo.