sábado, 31 de dezembro de 2011

ANNO DOMINI 2011

Hampstead, Londres

Esta é a última postagem (entrando no espírito retrospectiva) de um ano tão repleto de coisas a fazer, um ano de conflitos & belezas, que exigiu quase tanto de contemplação como de ação: um ponto que os velhos filósofos discutiam, isto é, o que vale mais nesta vida, a primeira ou a segunda coisa. Cristoforo Landino, em seu diálogo De Vita Activa & Contemplativa propõe, pela boca de Lorenzo de' Medici, que o justo e adequado seria um bom equilíbrio harmônico entre as duas coisas.

Discutindo a vida ativa e a contemplativa com o cardeal Ippolito d'Este, em Ferrara

Seja porque não acreditamos mais em equilíbrio harmônico, ou porque quase nada da nossa experiência atual realmente nos ofereça essa oportunidade, o tratado do século XV pode parecer algo formulaico, ou falso. De qualquer forma, o nosso bom-senso recomenda que a ação seja efeito de alguma contemplação (embora a reação instintiva também esteja em moda, porque espontânea; logo, sincera. E, se sincera, necessariamente boa).

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Por mais do que a metade deste ano (e um pouco do anterior) observei de longe as publicações e um ou outro debate artístico no Brasil: se as discussões eram pobres e as chamadas polêmicas, meramente provocações sem substância, houve livros muito interessantes. Para mencionar um que li apenas em 2011: O Homem Inacabado, de Donizete Galvão, um belo livro, limpo de quaisquer vestígios dos atritos vulgares do mundo literário; a arte da palavra ela-mesma, um livro feito da percepção das coisas, e de um poeta que depurou seu uso do verbo ao ponto de completa intimidade com ele. Aprecio a arte de Galvão, como sabeis, e esse foi um livro de poemas para ler & reler.

A revista Modo de Usar & Co. lançou seu terceiro volume em papel impresso, e é ótima. Destaco, no excelente volume, dois poemas sutis de Rodrigo Lobo Damasceno e o ensaio complexo, instigante, de Reuben da Cunha Rocha sobre a velha história da inutilidade da poesia (sendo a história velha & sobretudo cansada, é particularmente notável que Cunha Rocha tenha cercado o assunto por todos os lados com sua densa escrita de escrutínio filosófico). Junto, adquiria-se um livro pequenino e sofisticado, Cigarros na Cama, de Ricardo Domeneck, provando que a elegia amorosa ainda é, como Dante definiu, stilum miserorum.

Minha tradução de Lustra, de Ezra Pound, foi enfim publicada (e muito bem publicada), e poemas meus saíram na revista Alba, de Londres (editada por Richard Parker & Jessica Pujol), que também publicou traduções de John Ashbery feitas por um ótimo amigo e ótimo poeta catalão, Melcion Mateu, na mesma edizione; saíram poemas inéditos meus também na revista Cuadernos Hispanoamericanos, na Espanha, no volume dedicado à poesia brasileira, seleção organizada por Jorge Henrique Bastos. E pude ler minha poesia em Londres, traduzida para o inglês, o que foi uma ótima experiência. Fui apresentado à sra. Mary de Rachewiltz, filha de Ezra Pound e ótima tradutora da obra do pai para o italiano.


Prestando meus respeitos a maestro Lionardo, em rápida escapadela a Amboise

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Londres é um terreno sedimentar de culturas e épocas (hoje tentando se ajustar à crise européia, à guerra e à população multiétnica): é tanto a paisagem romântica dos sonhos de Keats, em Hampstead, quanto o século XVI de Henry VIII e Elizabeth I, ou o rigor ornamental de William Morris, e a obsessão vanguardista por diagoniais do vorticismo, que, aliás, ganhou uma mostra merecida e enorme na Tate Gallery, com obras de Henri Gaudier-Brzeska, Wyndham Lewis, Dorothy Shakespear, Jessica Dismorr, Christopher Nevinson e, é claro, Jacob Epstein, entre outros.

Expuseram a reconstrução da escultura biomaquinal de Epstein, enorme e ainda hoje surpreendente, Rock-Drill, de 1912, escultura escandalosa à época, e prefiguradora da tensa relação com as máquinas durante o século XX. Escrevi "reconstrução" porque Epstein a destruiu no começo da Primeira Guerra, frustrado com o descaminho que o uso das máquinas havia tomado: sua escultura, com o apelo naïf de um heroísmo que misturava homem e metal, havia se tornado monstruosa a seus olhos, e então ele extirpa a parte de baixo (a britadeira pontuda) e os braços que operavam o engenho, assim como deixa o filho gestado no ventre desse composto maquinumano como um semi-aborto.

Rock-Drill (1912, versão completa reconstituída), de Jacob Epstein

A ação de Epstein gerou então duas versões da obra: uma completa, que só existe reconstituída, e a versão abortiva, o busto, bizarro e desafiador, em bronze, modelo para as criaturas mecânicas de George Lucas na segunda trilogia de Star Wars. Sempre admirei a escultura (há inclusive uma britadeira de palavras no meu Icterofagia, dedicada a Epstein), e foi portanto algo indescritível vê-la diante de mim.

Falarei mais da escultura numa próxima postagem sobre o mecanomorfismo da vanguarda.

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Outra experiência a se ressaltar - sobretudo porque o instituto tem precisado de apoio para continuar sendo o que é, ou ao menos de maior consciência de seu papel na Inglaterra e no exterior - foi ter podido estudar na biblioteca do Warburg Institute por 8 meses.

O instituto veio de Hamburgo, na Alemanha,  já fugindo ao que vinha se tornando o nazismo, e foi levado ao centro de Londres por seu criador, o crítico de arte Aby Warburg. Em 1944 já estava ligado à University of London. Pesquisei em outras bibliotecas (incluindo a extraordinária British Library), mas nenhuma se compara aos três andares de cultura humanística compostos e dispostos por alguém que de fato tinha uma concepção poderosa da relação entre as diversas formas de cultura. Foram diretores do lugar, professores, ou pesquisaram lá: Fritz Saxl, Erwin Panofsky, Frances Yates, E. H. Gombrich e especialmente um homem eruditíssimo, e excelente escritor ainda quase desconhecido no Brasil, Edgar Wind, autor de livros extraordinários, como Pagan Mysteries in the Renaissance e Art and Anarchy (lembro que José Guilherme Merquior o leu e o menciona, assim como João Adolfo Hansen).

No umbral de entrada da biblioteca se lê, em grego, "Mnemosyne", a deusa da memória, mãe das musas. É lá mesmo que você percebe que está em um lugar único, verdadeiramente aplicado em manter o conhecimento algo vivíssimo: as coleções de livros, ao alcance do pesquisador (sem a burocracia de pedir, esperar e receber o livro na mesa) convida não apenas à maravilha de presenciar aquele mundo de conhecimento reunido em um só lugar, mas também à surpresa de descobertas inesperadas.


A fachada do Warburg Institute, em Londres

E é um lugar agradável, com a melhor equipe que se possa imaginar. Da minha mesa no Instituto eu via Woburn Place, via a tarde chegando pelas amplas janelas no horizonte roxo. A quantidade de livros extraordinários (mas também o arquivo de imagens, o arquivo fotográfico) deixa qualquer um desnorteado. É um prazer, para este leitor, dificilmente esquecível. Sou muito grato ao Instituto, incluindo a excelente palestra do professor Carlo Ginzburg, que promoveram por lá.

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Foi o ano de três grandes discos, também: Collapse into Now, do finado REM; King of Limbs, do Radiohead; e Let England Shake, de P.J. Harvey.

Especialmente este último, como vocês devem saber, gerou um tanto de discussão na Inglaterra, pela ambigüidade na abordagem da auto-imagem inglesa num mundo de guerras. Foi lido sobretudo como uma crítica, e lembro que em uma das faixas (The Words that Maketh Murder), a letra diz: "What if I take my problems to the United Nations?"

O interessante foi a coisa que veio como resposta das Nações Unidas: sugeriram que Harvey fosse como enviada das Nações Unidas aos campos de batalha. Ou seja: se você levar os seus problemas às Nações Unidas, eles te mandam levar bala em algum dos lugares onde estão, ah-ham, promovendo a paz.

E, como não poderia deixar de ser, anuncia-se novo disco de Cat Power, e em grande estilo: "King Rides By", velha faixa feita nova, com vídeo hipnótico em que o ex-boxeador filipino Manny Pacquiao, também em antiga filmagem feita nova, treina ritmicamente ao som do efeito de percussão e guitarra, vibrando.



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Por fim, e como desejo de um excelente 2012 para todos, lembrar que há duas exposições imperdíveis em São Paulo: uma, a que reúne mais de 200 obras do pintor Eliseu Visconti (1866-1944), ítalo-brasileiro que é um dos melhores do período, e cuja obra merece essa atenção focalizada. Não apenas hábil desenhista e retratista, Visconti tinha um domínio da distribuição espacial muito incomum à pintura brasileira do período. Seus quadros são muitas vezes evocativos sem propor necessariamente uma narrativa definida (diferente da maioria de seus pares). E nele se vê um aprendizado acadêmico se tornar impressionismo, e se tornar aquela alegoria fin-de-siècle que agradava tanto aos vienenses.


Essa exposição está na Pinacoteca até 26/02/ 2012. A outra é a exposição de gravuras de Marcelo Grassmann, de que já falei em mais de uma oportunidade aqui, que está no Espaço Cultural Citi, na Avenida Paulista, até 03/02/2012. Ambas são imperdíveis: não é apenas nas Letras que os nossos mais finos artistas passam despercebidos, e então essas oportunidades de poder apreciar obras dessa qualidade se tornam, naturalmente, obrigatórias.



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Agradecimentos a Andrea Mateus, Miriam Priscilla, Maria & Ademar, Jill & Conti, Suzy & Eduardo, Adriano Scatolin, João Vieira Jr., Nick Sawyer, Sandy Reinhardt. Para Angela Drower & Denys Drower (in memoriam).

domingo, 11 de dezembro de 2011

hymnoi


aujourd’hui, ce qui ne vaut pas la peine d’être dit, on le chante
                                                                                                       beaumarchais, le barbier de seville

I
aperta o cinto, pisa fundo
           a boa vida passará
em 1 segundo. grande crono
           velho corno:
antigo engodo algum
de onde píndaro
          pendia ou implorava
          sua paga
lavo a musa como corça
          com faíscas e canções
de meus pneus [para o alto
          e avante]
quem quiser ser vencedor
          que calce minhas botas,
minha arte,
          antes que,
é evidente,
haja mais de mim, como de um deus,
          por toda parte.

II

dos menelaus levou
os leitos, uma virgem em suas asas
mil éguas incansáveis
e guris em pouco tempo
se atiçavam;
que virtude então teriam
antes da tumba? —
batem bola numa várzea
desgramada
nos torneios onde, após,
três dedos dão mil dribles
de mil dólares
toque rápido e
sentindo o mel
de alguns milhões
dão chapéu nesta miséria.

III


voz de esquinas e bibocas
metálica na máquina idiota:
          bem supremo
o ser mortal
          de tão porca melodia;
glorioso meio hino de lampejo
          no quintal: um deus alegre
protege sua prece
          a implorar celebridade,
matraca de concurso
          de discurso
de jornal
          não larga a isca que lhe deu
a mão risonha
          em meio às nuvens:
a chave da cidade,
          sobre um burro,
o animal.

IV

num garfo vê tridente
entre outras coisas
           um vidente
à beira de alva praia
se confunde, “será vênus
          ou tritão”,
uma vulva ou
          grande arpão; dado
de aposta, sabe o vento com saliva
          no seu dedo,
                           búzios ou brinquedos
o levam oportuno a miami
neste mau “porvir azedo”
          um casado, outro morto
“sei dizer, quando me deito”
          pois depois um livro inteiro
psicoimportado
          “dois ou três, verdade mesmo,
sofrem acidente ou feio dano
          neste ano
danado”,
          quod scripsi, sempre a esmo.

V

do monte pó e com rajadas
soberano; glória aguda
como o morro de onde mata
          e quer a morte amante;
belo enfeite as dez correntes
          de ouro x quilates
reluzindo na metranca
sobre o ombro calejado.
quem o ouve diz que é como
          júpiter à noite: caem
raios — todos falsos —
          mas fulminam.


VI

tânatos te teve em tetas,
          distintivo: detectando, delegavas
uma senha pro banquete
          ou pro boquete
aquece ao sol à tarde
          a boca rubra da sereia
que berra como louca no capô
          a noite inteira:
éter, porre de sujeira,
          vai com calma, coração!
cruzar dois ossos na caveira
—eloqüente, a velha lei— e
          me passa a escarradeira.

VII

acocorada de tão
          flamante coma
                         desdourada
grande olympia
          se banhava: tem o cetro
de sua casa, mas colhia só galinhas
          no espelho arredondado

que fascínio festejar?
          que espora
                         põe o corpo a se lembrar
da antiga chipre?

olhos glaucos,
          para homens e crianças
louça à tarde
insônia, noites frias
pratos quentes
          e palavras
                         e palavras
como a cara
amorphophallus acabando no quintal

agora cala quando sobe
em um sorriso
                         eis adônis
                                   nada mau