Fabiana Faleiros, com óculos escuros, dentro de um fusca.
Há coisas excelentes da liberdade que estão – deus seja louvado- muito longe do tipo de ficção romântica sobre o assunto. De modo que alguém precisa dizer (estou fazendo isso): a liberdade não é um produto de extração romântica.
Sou daquelas pessoas que acham que boa parte do que presta no modernismo é anti-romântico. E a liberdade em arte é a famosa faca de dois gumes. Sobre isso há uma coisa curiosa dita por Lawrence Ferlinghetti (ótimo poeta beat bestseller e dono da livraria City Lights, de San Francisco) em entrevista a Rodrigo Garcia Lopes.
Ele falou sobre Allen Ginsberg, seu amigo, que teria dito: “primeira idéia, melhor idéia”, e comenta que no caso de Ginsberg, que tem uma mente peculiar e interessante, de fato a primeira idéia com freqüência é uma idéia excelente, mas que os imitadores desse processo acabam escrevendo umas coisas inanes e banais.
Fiz esse excurso para chegar a uma afirmação minha, a de que a mente, ou o modo poético de Fabiana Faleiros pensar, é muito interessante, e muito livre. Livre de condicionamentos literários - e longe de mim o dizer que os condicionamentos literários sejam, por definição, algo ruim.
Mas é por outro lado muito estimulante ler uma obra não apenas livre disso, mas começando a se construir com uma leveza de toque que nos induz a pensar que a poesia recomeça de um tipo de marco zero, com tudo o que isso implica.
O primeiro livro que publicou foi um belo livro sem título, artesanal, com cópias distribuídas a conhecidos, e que, por essa sorte, caiu em minhas mãos. Há ensaio de poesia lá, e acho mesmo que a autora tem restrições atuais a alguns textos do pequeno volume (há um monte de poemas novos dela em seu peculiaríssimo blog Virando Azeite, link para o qual os gentis leitores encontram aí do lado, em "Let us go and make our visit").
Não obstante isso, flagra-se nele justamente um frescor de olhos novos sobre as coisas, um belo sem-cerimônia que aborda a linguagem por ângulos inesperados, por vezes forçando-a quase além dos limites, em que se percebe a tentativa de dizer algo ainda sem código. Essa ousadia não-programática se dá sobretudo com a sintaxe.
Vou citar um poema bastante diverso do que F.F. tem escrito ultimamente (seu “método”, por assim dizer, se sutilizou), mas com certas virtudes extremas, e portanto mais fáceis de visualizar num uso extremo. É este:
Nós, no raro café, sempre nos sentávamos numa mesa onde na qual existia
outra por baixo da mesma onde nos deitávamos e começávamos a conversar.
Muito embora houvesse entre a gente um cano que mantinha mesa de cima
pendente era nossa estratégia de me aproximar. Havia um buraco onde o café
passado a vácuo era colocado para nos banhar. O garçom já cansado servido
do café cheiroso na gente e eu nem dizia, ai tá muito quente, e as feridas nasceram
dormentes. Queres levantar? Nessa pergunta se decide passar açúcar e começa
a me coçar. Raspa este elemento acessório que faz parte de todo empório:
"Forneço gosto mas não sou a coisa em si. How do you know me?"
Se a minha brancura associada a espessura da tua pele te repele te repele.
Se queres ser um adoçante. Se queres atingir a forma que retorna sem ser
mero acompanhante. Passe café por mim.
Escrevi “anárquica” porque estamos francamente fora de um esquema de ordem prefixada, embora tecnicamente se possa aproximar o poema da mais radical collage cubista - que recorta da composição o tempo percebido então como simultaneidade sensível - ou dos métodos de deslocamento referencial dos dadaístas. Gertrude Stein, também, no que concerne a umas coisas não se corresponderem sintaticamente, ou repetirem-se.
Mas não é exatamente isso. Me parece o princípio de alguma coisa, mais do que a reelaboração consciente de algo prévio, até porque a técnica não se repete no livro, que até essa ligeireza se permite: seu foco está constantemente em mudança, e o que serve para um poema não serve para outro.
Nos poemas, as vozes que falam parecem ter um atraso, como as respostas dos personagens uns para os outros num dos filmes de sonho (e pesadelo) de David Lynch. O deslocamento, que se sente pelo uso de orações que não se complementam, mas muitas vezes reverberam, representa com propriedade o incomum dessa percepção. E é o que importa.
E daí, uma límpida definição:
um dia eu olhei para a cidade e disse:
eu vou ganhar essa cidade
o que é diferente de dizer:
essa cidade vai ser minha
Poesia; ou, é diferente.
Sou daquelas pessoas que acham que boa parte do que presta no modernismo é anti-romântico. E a liberdade em arte é a famosa faca de dois gumes. Sobre isso há uma coisa curiosa dita por Lawrence Ferlinghetti (ótimo poeta beat bestseller e dono da livraria City Lights, de San Francisco) em entrevista a Rodrigo Garcia Lopes.
Ele falou sobre Allen Ginsberg, seu amigo, que teria dito: “primeira idéia, melhor idéia”, e comenta que no caso de Ginsberg, que tem uma mente peculiar e interessante, de fato a primeira idéia com freqüência é uma idéia excelente, mas que os imitadores desse processo acabam escrevendo umas coisas inanes e banais.
Fiz esse excurso para chegar a uma afirmação minha, a de que a mente, ou o modo poético de Fabiana Faleiros pensar, é muito interessante, e muito livre. Livre de condicionamentos literários - e longe de mim o dizer que os condicionamentos literários sejam, por definição, algo ruim.
Mas é por outro lado muito estimulante ler uma obra não apenas livre disso, mas começando a se construir com uma leveza de toque que nos induz a pensar que a poesia recomeça de um tipo de marco zero, com tudo o que isso implica.
O primeiro livro que publicou foi um belo livro sem título, artesanal, com cópias distribuídas a conhecidos, e que, por essa sorte, caiu em minhas mãos. Há ensaio de poesia lá, e acho mesmo que a autora tem restrições atuais a alguns textos do pequeno volume (há um monte de poemas novos dela em seu peculiaríssimo blog Virando Azeite, link para o qual os gentis leitores encontram aí do lado, em "Let us go and make our visit").
Não obstante isso, flagra-se nele justamente um frescor de olhos novos sobre as coisas, um belo sem-cerimônia que aborda a linguagem por ângulos inesperados, por vezes forçando-a quase além dos limites, em que se percebe a tentativa de dizer algo ainda sem código. Essa ousadia não-programática se dá sobretudo com a sintaxe.
Vou citar um poema bastante diverso do que F.F. tem escrito ultimamente (seu “método”, por assim dizer, se sutilizou), mas com certas virtudes extremas, e portanto mais fáceis de visualizar num uso extremo. É este:
Nós, no raro café, sempre nos sentávamos numa mesa onde na qual existia
outra por baixo da mesma onde nos deitávamos e começávamos a conversar.
Muito embora houvesse entre a gente um cano que mantinha mesa de cima
pendente era nossa estratégia de me aproximar. Havia um buraco onde o café
passado a vácuo era colocado para nos banhar. O garçom já cansado servido
do café cheiroso na gente e eu nem dizia, ai tá muito quente, e as feridas nasceram
dormentes. Queres levantar? Nessa pergunta se decide passar açúcar e começa
a me coçar. Raspa este elemento acessório que faz parte de todo empório:
"Forneço gosto mas não sou a coisa em si. How do you know me?"
Se a minha brancura associada a espessura da tua pele te repele te repele.
Se queres ser um adoçante. Se queres atingir a forma que retorna sem ser
mero acompanhante. Passe café por mim.
Escrevi “anárquica” porque estamos francamente fora de um esquema de ordem prefixada, embora tecnicamente se possa aproximar o poema da mais radical collage cubista - que recorta da composição o tempo percebido então como simultaneidade sensível - ou dos métodos de deslocamento referencial dos dadaístas. Gertrude Stein, também, no que concerne a umas coisas não se corresponderem sintaticamente, ou repetirem-se.
Mas não é exatamente isso. Me parece o princípio de alguma coisa, mais do que a reelaboração consciente de algo prévio, até porque a técnica não se repete no livro, que até essa ligeireza se permite: seu foco está constantemente em mudança, e o que serve para um poema não serve para outro.
Nos poemas, as vozes que falam parecem ter um atraso, como as respostas dos personagens uns para os outros num dos filmes de sonho (e pesadelo) de David Lynch. O deslocamento, que se sente pelo uso de orações que não se complementam, mas muitas vezes reverberam, representa com propriedade o incomum dessa percepção. E é o que importa.
E daí, uma límpida definição:
um dia eu olhei para a cidade e disse:
eu vou ganhar essa cidade
o que é diferente de dizer:
essa cidade vai ser minha
Poesia; ou, é diferente.
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