terça-feira, 19 de maio de 2009

CULTURA AGORA, EM QUATRO NOMES


Há autores fundamentais & idéias fundamentais sobre cultura, recentes, que ainda não tiveram o impacto necessário: não são obscuros, é evidente, mas a verdadeira dimensão de suas contribuições está muito longe de ter atingido um nível condigno de aplicabilidade.

São idéias acháveis em livros cuja importância parece se projetar no futuro, porque propõem algo melhor, ou mais amplo, ou mais generoso do que o que se vive. Têm todos aquele aspecto humanístico que é comum ver pronunciado extinto por todo lado.

Não está. E não apenas não está como também apresenta o resultado extraordinário de algumas mentes em ação: são todos autores que conhecem o mundo moderno, mas já são capazes tanto de criticar com precisão os equívocos modernos, quanto de incorporar essa experiência, reinventada.

Comento alguns muito brevemente — quatro aqui —, indicando edições em português & acessíveis.


a) Paolo Portoghesi (1931- )



O grande arquiteto italiano — na minha opinião, o maior arquiteto vivo — é também um pensador seminal.

Após as paisagens modernas terem surgido em metrópoles industriais, infladas & desordenadas, nas quais a qualidade de vida é o que já sabemos, assim como há um vazio na ética da construção (para não falar do aspecto meramente prático ou, por oposição, espetaculoso, de seu design), Portoghesi rediscute a arte da arquitetura no livro Depois da Arquitetura Moderna (aqui no Brasil, pela Martins Fontes).

Estudioso da arquitetura do Renascimento & pouco posterior (dedicou-se especialmente a Borromini), Portoghesi rediscute a questão dos materiais usados, questões de forma & paisagem, uma concepção ecológica do uso de arejamento natural & a utilização de fontes naturais de iluminação, também. Associa, num livro belíssimo, Natura & Architettura, formas encontráveis na natureza & formas históricas da arquietura.

É o oposto daqueles monstros de vidro e concreto, que arruínam o horizonte, escondem o sol, irrespiráveis & cinzentos. Sua obra de arquitetura compõe passado & presente. Repõe a arquitetura no centro do pensamento sobre a vida humana, & como força viva & imaginativa na organização dos espaços públicos.

Um arquiteto que saiba que a ética vitruviana não é mero papel para traças é algo muito, muito raro.


b) Murray Schafer (1933- )


O canadense Murray Schafer repensou o sentido do som, contextualizando-o no espaço & no tempo: aplica suas idéias à paisagem histórica, num conceito chamado soundscape, ou "paisagem sonora", em que aborda o significado do som dentro da vida diária, os sons a que estamos expostos (aviões, carros, rádios, telefones, o zumbido da eletricidade), & pretende reproporcionar a leitura que fazemos do som em sociedades do passado, que não tinham motores ou eletrodomésticos rugindo a toda hora.

É evidente que Schafer parte de outro músico & pensador recente, John Cage, que terá sido o primeiro a pensar nos termos de uma sinfonia de ruídos. Schafer, justamente por esse complexo sonoro inconsciente que foi se juntando à vida, procura torná-lo consciente numa idéia de ecologia sonora.

Um de seus livros mais importantes é O Ouvido Pensante, da década de 1960 (publicado aqui pela editora da Unesp).


c) Jerome Rothenberg (1931- )




O poeta estadunidense, ligeiramente posterior aos beatniks, desenvolveu o conceito de etnopoesia, isto é, aplicar os mecanismos do que chamou "tradução total" para traduzir não apenas o que diz um poema de uma sociedade, por exemplo, indígena, mas também tudo o que concorre para sua produção original.

E assim, por exemplo, na tradução das Horse Songs, Rothenberg também adapta o recitativo encantatório Navajo original para o inglês.

Partindo das muito amplas & variadas hipóteses de tradução poética de Pound, Rothenberg acrescenta uma nova dimensão a essa experiência pela hipótese de que a mera literalidade na tradução de textos (de qualquer espécie) de outra cultura rouba-lhes aquilo que fazia deles poderosos mecanismos de geração de sentido coesivo.

Seu trabalho devolve aquele equilíbrio desejável que se observa nas melhores traduções de poesia, entre a forma & o sentido (porque sentido é forma & viceversa, como sabeis).

Não apenas isso, Rothenberg também reuniu antologicamente a tradição moderna (um contrasenso já resolvido por Octavio Paz) nos três enormes volumes de Poems for the Millennium, que põem todo o modernismo de vanguarda sob nova perspectiva, facilitando o estudo de suas proporções.

No Brasil podemos ler Rothenberg na edição da Azougue (Etnopoesia no Milênio), com poemas & ensaios traduzidos por Luci Collin.


d) João Adolfo Hansen (1942- )


Muito provavelmente o maior crítico literário brasileiro, seus livros — & ensaios ainda não coligidos, o que é lamentável — são, para se ter uma idéia, indispensáveis para a leitura informada de Gregório de Mattos, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade & João Guimarães Rosa.

O que fez não é pouco: restituiu, com uma leitura eruditíssima, a complexidade latente (porque não lida pela crítica anteriormente) nesses autores. Discutiu o caráter anacrônico da maior parte das leituras modernas de obras anteriores ao século XIX & demoliu alcunhas retrospectivas que se penduram na linha do tempo — como, por exemplo, Barroco — & assim expande a discussão de seus autores para um âmbito que retraça formas mentais.

Hansen, muito ao contrário do que possa parecer, é menos um fruto da universidade brasileira do que uma grata anomalia dentro dela. Sua seriedade investigativa & o alcance de sua memória (para sequer mencionar o volume de leituras aproveitadas) são únicos, & não apenas no Brasil, é necessário frisar.

Livros seus: A Sátira e o Engenho (com nova edição da Unicamp + Ateliê), que estuda Gregório de Mattos, ou Alegoria: construção e interpretação da metáfora (em nova edição da Unicamp + Hedra).

8 comentários:

Anônimo disse...

agora eu entendi o problema com a crítica "sociológica"... E uma coisa, a palavra "eruditíssimo" não parece kitsch, pois seria um superlativo de algo já elevado? Algo como "Deus poderosíssimo" ou "Lúcifer era um anjo luminosíssimo"?

Abraço,

Leandro

Dirceu Villa disse...

Olá, Leandro.

Sabia que não faz bem para a saúde guardar mágoa?

Nos dois casos que v. cita, de superlativos, v. tem toda razão, são kitsch.

Porque supõe-se que deus seja poderosíssimo, & Lúcifer, como sabeis, é o porta-luz. É evidente.

No caso de Hansen, embora v. sugira que bastaria citar-lhe o nome para que soubéssemos suas faculdades, nem sempre é coisa patente para todos.

Daí o "eruditíssimo", assinalado, que incomodou o seu superlativo conhecimento, Leandro.

Vai daqui um abraço,
(com as devidas desculpas por ter ferido seus sentimentos sociológicos daquela outra vez),

D.

Anônimo disse...

Então este é orosto do famoso Hansen... Dirceu, obrigado pelas recomendações, comecei a ler o "O o" hoje mesmo.
Gostei muito do blog (especialmente pela presença do adjetivo "estadunidense". Mais do que justo).

Abraço!
Carlos

Anônimo disse...

Dirceu,

That's all folks! Gosto do seu blog, por isso comento. Não guardo mágoa não, ao contrário, escrevo com bom humor. Na verdade o que me entristece um pouco é a nossa comédia ideológica, quando a gente (e me incluo no problema) supõe que esteja à altura da cultura universal, e no fundo estamos reproduzindo as birras de corredor da Universidade de São Paulo.

Mas o Horácio diz em algum lugar da Arte Poética que também devemos brincar com as idéias, não é ?

Outro abraço,

Leandro

Dirceu Villa disse...

Que bom, Leandro.

Mas "cultura universal" não incluiria também esse pequenino enclave de dores de cabeça, a USP?

Não estou reproduzindo birras, que, aliás, não tenho. Mas a gente deve saber o que vê que funciona & o que vê que não funciona, não é mesmo?

Minha crítica anterior à aplicação da sociologia como método de ler literatura dizia apenas que não lê os textos pelo que são, mas pelo que se pode juntar de exemplar socialmente neles.

E que, por esse motivo, faz um tanto de anos que não se lê qualitativamente, mas buscando o caso exemplar de outra coisa a se falar.

Veja só, por outro lado: há um ensaio de Antonio Candido, em Recortes, que acho ótimo. É uma leitura minuciosa de como Rimbaud articula suas bizarras imagens num poema.

Depois de aparentemente esgotar o assunto para seu leitor, Candido termina o ensaio escrevendo: "Mas não tenho certeza".

Esse é o espírito. Aquele texto não só é ótima crítica literária, como também humor esperto & im-pre-vi-sí-vel.

Vai daqui um abraço,

D.

Dirceu Villa disse...

Obrigado, Carlos.

"Estadunidense" é praxe, então honestamente nem me dou conta.

Porque "americano" sempre me pareceu demasiado genérico, n'est pas?

Abrazo,

D.

júlia disse...

olha só o hansen, arrasando de maior crítico literário do brasil. eu sou suspeita, mas é mesmo.

paulo de toledo disse...

caríssimo, muito legais as dicas.
curti os poemas tb.

abbracci,

paulo