quarta-feira, 2 de junho de 2010

LO REIS RICHART D’ANGLATERRA


Já escrevi neste Demônio Amarelo sobre a poesia trovadoresca ocitânica, apresentando & traduzindo Peire Vidal & Sordello



(indico também ao leitor interessado os ótimos ensaio & tradução de Rodrigo Lobo Damasceno, postados na Modo de Usar, para uma cantiga de amigo escrita por Raimbaut de Vaqueiras,


sem esquecermos do trabalho ímpar de Ezra Pound com os provençais & das estupendas & várias traduções de Augusto de Campos).

Das canções provençais que conheço são da minha preferência: “Kalenda Maya” de Raimbaut de Vaqueiras; “Chanson do.il mot son plan e prim” e “Lo ferm voler q’el cor m’intra” de Arnaut Daniel; “Can vey la lauzeta mover” de Bernart de Ventadorn; & esta que vocês lêem abaixo, “Ja nuls hom pres non dira sa razon” de Ricardo Coração de Leão, ou Ricardo I de Inglaterra (c. 1157-1199).

Estou falando não exatamente dos poemas (há muitas outras canções trovadorescas que entrariam nessa lista, & em muitos casos não nos chegou a notação musical), mas especificamente da música, naquele preceito de motz e.l son, ou o casamento perfeito (se algum pode ser) entre as palavras & a música.

Lo reis Richart, que tinha possessões na região da Provenza & conhecia trovadores (Bertran de Born, Arnaut Daniel) teria escrito essa canção quando esteve preso na Áustria (1192-1194), mas nunca saberemos ao certo, como sói acontecer nesses casos de distância histórica a perder de vista: o fato é que é uma canção belíssima.

O poema, em si, não se pode comparar com a engenhosidade de Daniel, D’Aurenga ou Vaqueiras, ou com a riqueza de imagens inventadas que costumamos ler em Bertran de Born, Guillem de Peitieu, Peire Vidal, Marcabru, etc. As coblas doblas (ou estrofes duplas baseadas em uma rima) de “Ja nuls oms pres” são simples, os versos decassilábicos (com versos de seis sílabas ao fim de cada estrofe), sem contorções sintáticas nem aspectos lingüísticos de artesanato particularmente notável.

Mas nessa simplicidade absoluta & no modo direto da exposição é que está o seu charme para mim, pois foi escrito imitando (ou sendo de fato) um conciso & eloqüente apelo direto — sem contar, é claro, a melodia extraordinária em que se deve cantá-lo.

Seria interessante comparar este poema de Ricardo Coração de Leão com o que Afonso X, o Sábio, escreve contra a covardia de seus barões & sobre as aflições da cabeça coroada. Mas minha preguiça é terrível neste momento, um momento mais cigarra que formiga, ou o que quer que vos ocorra de semelhante a isso. Perdoai.

A canção, cogita Martín de Riquer & outros antes dele, com bons motivos, teria sido escrita antes em francês. É nessa versão, a francesa, que conheço a música para duas de suas estrofes. Não obstante, a versão provençal é igualmente cantável na mesma melodia: é, no entanto, duas estrofes mais curta (a francesa tem seis ao todo), & a tornada não reúne as rimas do poema, porque reproduz as da sexta estrofe inexistente.

Traduzi da versão provençal, encontrável na antologia de Martín de Riquer, de onde estampo o texto original após a minha tradução. Conheço & tive presente também a versão francesa &, naturalmente, a tradução ad sensum para o espanhol, acompanhada de notas, de Riquer.

Boa notícia: aqueles de vocês que tiverem a canção podem cantá-la também em português, a partir da minha tradução, feita para caber na música. Como a linha melódica é composta para uma estrofe & se repete nas demais, é possível cantá-lo todo.

Duas notas rápidas: o “senhor” de Richard é Philippe Auguste, então rei da França. Tomou Gisors quando Coração de Leão estava preso, em 1193.

A condessa em questão é Marie, condessa de Champagne, & meio irmã (por parte da mãe, Eleonora de Aquitânia) de nuestro Corazón de León.

Por fim, esta tradução é dedicada à minha amiga, a alaudista Carin Zwilling.

Gaudete.


QUAL HOMEM PRESO USARÁ SUA RAZÃO
Ricardo I de Inglaterra: tradução de Dirceu Villa

I

Qual homem preso usará sua razão
corretamente, não com aflição?
mas o consolo me pede a canção.
Rico de amigos, de pobre atenção:
tanta vergonha, não me livrarão?
dois invernos, e eu preso.

II

Pois saibam bem, bom soldado e barão,
inglês, normando, pictone e gascão,
não há parceiro, pobre ele ou não,
que eu deixasse, sem chance, em prisão.
E não digo isso como acusação,
mas ainda estou preso.

III

Sei muito bem, por ver tão claramente,
que preso ou morto é sem nome ou parente;
e se me deixam por ouro somente,
mal para mim, pior pra minha gente,
que à minha morte dirão negligente,
se eu ficar aqui preso.

IV

E põe minh’alma cansada e doente
que meu senhor minha terra atormente
sem se lembrar de uma jura recente
que nós fizemos aos santos, cientes;
mas eu sei bem que nem tão longamente
estarei aqui preso.

V

Condessa, vosso valor soberano
salve Deus, e guarde a bela sem dano,
a por quem estou preso.


JA NULS OM PRES NON DIRA SA RAZON
Lo Reis Richart d’Anglaterra

I

Ja nuls hom pres non dira sa razon
adrechament, si com hom dolens non;
mas per conort deu hom faire canson.
Pro n'ay d'amis, mas paure son li don;
ancta lur es si, per ma rezenson,
soi sai dos yvers pres.

II

Or sapchon ben miey hom e miey baron,
angles, norman, peytavin e gascon,
qu'ieu non ay ja si paure companhon
qu'ieu laissasse, per aver, en preison.
Non ho dic mia per nulla retraison,
mas anquar soi ie pres.

III

Car sai eu ben per ver certanament
qu'hom mort ni pres n'a amic ni parent;
e si.m laissan per aur ni per argent
mal m'es per mi, mas pieg m'es per ma gent,
qu'apres ma mort n'auran reprochament
si sai me laisson pres.

IV

No.m meravilh s'ieu ay lo cor dolent,
que mos senher met ma terra en turment;
no li membra del nostre sagrament
que nos feimes els sans cominalment
ben sai de ver que gaire longament
non serai en sai pres.

V
Suer comtessa, vostre pretz soberain
sal Dieus, e gart la bela qu'ieu am tan
ni per cui soi ja pres.


Para aqueles que gostariam de ler mais, seguem alguns livros de divulgação de poesia provençal disponíveis em português, no Brasil:

Campos, Augusto de. Invenção, São Paulo, Arx.

Campos, Augusto de. Verso Reverso Controverso, São Paulo, Perspectiva.

Saraiva, Arnaldo. Guilherme IX de Aquitânia: Poesia, Campinas, Editora da Unicamp.

Spina, Sigismundo. A Lírica Trovadoresca, São Paulo, Edusp.

Se você lê espanhol, os três volumes de Los Trovadores, de Martín de Riquer, são uma ótima pedida.

4 comentários:

Tibiri-Sa disse...

Oi Dirceu, talvez vc não se lembre, mas eu te emprestei uma biografia do Ezra Pound Durante as aulas da Augusta sobre Cervantes. Achei seu blog na Germina e passei a acompanhá-lo, já que é muito bom. Como vi essa tradução de lírica medieval, resolvi mandar uma brincadeira que eu fiz com a l'aura amara. Não é uma tradução, só uma brincadeira. Espero que goste e abraço:

Brisa agreste
roça nos ramos,
cair
de folhas sobre a face.
Fino
pio,
como aves no estio,
nós que amamos,
sai
nosso ai
do coração,
até sumir
pulsar,
como em formol
a carne corrompida.
Mas pode ir
à boca se eu a vejo.

Ela veste
perfeito samo.
Sentir,
preciso num enlace.
Lino,
fio,
precioso atavio.
Dum cálamo,
dai,
desenhai
na escuridão
que eu quero ir
olhar
vulto em farol,
no leito nau perdida,
a submergir
no báratro dum beijo.

O que investe
servos e amos
- servir -
ordena sem impasse.
Minos,
brio,
sem rito do immixtio
em Pérgamo
cai.
Oscilai
devassidão,
que eu vou partir
e honrar
o voto em prol
pureza concedida,
quando eu abrir
os braços ao seu pejo.

Luz celeste,
a vi como em Patmos.
Ouvir,
se ela se desnudasse,
hinos.
Cio,
nunca me sacio.
Corsa, eu, gamo.
Vai,
sazonais
ritmos que dão
no consentir
deitar.
Eu jogo anzol
na hora colorida
em que a seguir
e no susto a bordejo.

Fome e peste
que libertamos,
carpir,
lhes demos livre passe.
Sinos,
frio,
choro e calafrio
no tálamo.
Pai,
no Sinai
nos dá perdão.
Se o céu parir
o mar
nos seja atol.
Preparando a partida
vamos subir
com anjos num cortejo.

O galardão
de conseguir
amar
nos faz qual sol,
que em si sustenta vida.
Basta pedir
que o Amor nos dê o ensejo.

Leandro Tibiriçá

Dirceu Villa disse...

Lembro, claro, Leandro: era aquele livro do Humphrey Carpenter, na edição Faber. V. foi gentilíssimo.

Livro muy útil durante o período em que traduzi o Pound.

Come stai? tudo bem? Adoro a poesia provençal desde que li as traduções do Augusto de Campos & que pude ler a antologia do Riquer, que é um tesouro nunca assaz louvado.

Que bom que partilhamos esse gosto tão peculiar, n'est pas?

"L'aura amara" é, creio que quase unanimemente, o poema provençal mais difícil de traduzir.

Hoje paráfrases & coisas do tipo estão voltando ao uso, felizmente: sempre foram um excelente modo de relacionar poetas de épocas distantes.

Que bom vê-lo por aqui.

Um grande abraço,

D.

Marcos Tamamati Martins disse...

Olá, Dirceu!

Fico feliz por encontrar seu blog na rede!

Temos muito em comum na nossa pesquisa literária, pelo que pude até agora ver.

Rapaz, vamos conversar... tô fazendo proganda sua faz já um tempo, rs, dê uma olhada:

http://tmunsui.blogspot.com/

Daud disse...

Dirceu (e agora que li os comentários neste post, me sinto segundando muitos), agora mesmo descobri, sem relação nenhuma com nada de nada (evidente, ao menos), que já acho o seu o melhor blog da internet. De longe. Sem puxa-saquismo (seria estranho), e coloque nisso uma cota de saudade, não deixa de ser, mas é nonetheless sincero.