Schama destacou a relação entre as descrições de êxtase da santa, publicadas e imensamente populares à época, e a interpretação escultural que Bernini lhes deu. Assinalou o estratagema de fazer a escultura suspensa, para representar as descrições de levitação; a câmera do documentário, funcional, apontava para a delicadeza dos dedos desse anjo (que nos recorda mais o filho de Afrodite) tocando a túnica da santa; nos lembrou também que o texto fala numa "seta dourada", a mesma que o sorridente anjo porta na peça, mas, neste caso, direcionada para uma região do corpo que fica, na verdade, bastante abaixo do coração (o lugar descrito por Teresa D'Ávila).
O êxtase evidentemente carnal - como o rosto da santa não nos deixa duvidar - é também o êxtase da presença divina, que vemos descer em forma de raios de luz dourada ao fundo e acima. Mas o principal, como ressaltou Schama, é o que Bernini fez ao drapeado da túnica. Disse algo como se the marble was melting, "o mármore derretesse", visualmente, para encenar as convulsões prazerosas do corpo escondido sob a veste. O tecido se torna quase líquido, fluido, no contrasenso patente de ser pedra.
Bernini entendia tanto de movimento quanto de carnalidade, percebemos, de um modo único na história da escultura. Admiramos Boccioni, futurista, quando nos deslumbra com seu registro do movimento numa arte por definição imóvel em Formas Únicas de Continuidade no Espaço (há uma cópia dela no MAC, da USP), mas aqui em Teresa D'Ávila, e também em seu Davi, estão as origens disso.
Umberto Boccioni, Formas Únicas de Continuidade no Espaço
O Êxtase de Sta. Teresa D'Ávila é uma peça da maturidade, mas já encontramos seu "conhecimento carnal" muito anteriormente, numa obra de seus 24 anos, chamada O Rapto de Prosérpina, de que dou o exemplo de um enquadramento específico, um detalhe:
É notável o afundamento dos dedos de Plutão na pele de Prosérpina, deixando literalmente "palpável" tanto seu esforço para a fuga quanto o empenho do deus em agarrá-la, causando aquela maravilha de nos fazer duvidar da pedra, como duvidamos da tela quando observamos a gota d'água escorrendo pelo vaso, em primeiro plano, no Aguadeiro de Sevilha, de Velázquez.
Já no topo deste texto, no busto de sua amante Constanza Buonarelli (em que a palavra "busto" ganha então um duplo sentido), é evidente o decote que revela o volume dos seios sob a camisa, complementado pelo rosto passional. Mas não é apenas isso: Bernini era capaz de uma doçura inigualável a desenhar lábios entreabertos, com contornos suavíssimos, de um arredondado de delicadeza extrema, e esse é um claro exemplo disso: a inspeção próxima revela essa intensa doçura do acabamento. Schama demonstra a novidade, retomando de qualquer forma os antigos bustos romanos, que era esculpir um busto íntimo, não dedicado a figuras públicas.
Por fim, ainda falta mostrar Apolo e Dafne, que é até hoje uma das ilustrações mais espantosas de um conto das Metamorfoses ovidianas, e reincide nessa perseguição passional, tema caro a Bernini. Encontramos o casal quando Apolo já quase a alcançava, atiçado pela flecha do Amor, e ela, Dafne, repelida por um truque do mesmo deus, conseguindo a graça de ser transformada em loureiro.
Junto das pernas de Dafne, vemos subir a casca do loureiro já cobrindo a pele, com texturas completamente diversas, e nos pés notamos os dedos que já se projetam para baixo como raízes. Folhas e galhos crescem das pontas dos dedos das mãos e dos cabelos na transformação. A riqueza de detalhes das folhas é algo extraordinário, e Schama destaca o fato de que os escultores que auxiliaram nesses detalhes ficaram furiosos, obviamente, ao não receber os créditos, coisa que o mau-caráter Bernini fez também ao arquiteto Francesco Borromini em outra ocasião.
Nessa escultura, como nas outras, é fascinante o cuidado com o registro do movimento. Evidentemente que, ao contrário de Boccioni, não interessa a Bernini a constatação da estrutura formal do movimento, dada como evidência, mas o apelo dramático, teatral, que confere ao episódio retratado. O que capta, aliás, e é importante lembrar, o caráter cinematográfico também avant la lettre das Metamorfoses (já lembrado por Augusto de Campos, no livro Verso Reverso Controverso).
Foi um excelente documentário. E motivou a presente tagarelice, como vocês vêem.
9 comentários:
sta teresa era pórreta. mas coitadinhas das carmelitas que têm que andar descalças! pobres caramelitas.
veja por outro lado, angie: elas precisam limpar os pés, mas não precisam limpar o chão.
dirceu, que belo post!
o "rapto" é maravilhoso.
abrações,
paulo de toledo
Que coisa! Vi apenas parte desse documentário. Sabe, o detalhe sobre "O Rapto de Prosérpina" é maravilhoso... É para marear os olhos de qualquer um. Arisco dizer como soa fotografia. É como se meus próprios dedos pudessem tocar a maciez daquela pele! Obrigada!
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Esse moço...mais de 1 mês longe do blog. O que estará aprontando?
Belo post, caro Villa. Talvez v pudesse falar também de Bernini ter sido um dos primeiros a passar trabalho aos artífices e conceber "apenas" a idéia. Da construção do Baldaquino que, quando está quase pronto, descobre-se que está fora de proporção. Ou mesmo do Davi dele que é muito bom, meio malicioso. Obras impressionantes pela beleza.
o que eu estava procurando, obrigado
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