quinta-feira, 8 de abril de 2010

De leões japoneses, Anne Carson & mulheres

A poeta canadense Anne Carson

Anne Carson (1950) escreve coisas peculiares, muito complicadas às vezes. Às vezes formalmente, nessa pele intrincada da poesia, mas sobretudo no modo de significar. Cruza áreas sem contato, enfia o ensaio na poesia, mescla um estilo fake de reportagem, adota o poema em prosa, etc. etc.

Professora & tradutora dos velhos gregos (sobretudo Safo), alcançou fama, ou o quanto disso exista em poesia, apreciada por um espectro de gente que vai de Susan Sontag a Nicole Kidman. Nem sempre acerta, mas seus erros são instigantes porque são fruto de uma verdadeira inquietação, de um empurrar de limites.

Sei que esse não costuma ser um argumento muito persuasivo, mas ninguém é de ferro. Ponho abaixo um poema que traduzo de um de seus livros, Men in the Off Hours (2001). Carson costumava ser retirada, silenciosa. Parece que agora tem uma faceta performer também. Não sei, nunca vi. Mas sua poesia me parece ter a medida justa de alguém que se entupiu da arte antiga, & que é não obstante novíssima.

Ponho um poema dos menos esquisitos dela, mais por sua extrema força advinda da simplicidade & da exatidão, que mimetizam a delicadeza certeira de seu tema plástico & metafísico.

Katsushika Hokusai (1760-1849) é o maravilhoso gravador, do século XIX, do ukiyo-e japonês, aquela xilogravura especializadíssima, que exige nada menos do que um mestre, & ele deixou obras-primas, como a famosa série de 36 vistas do monte Fuji [Fugaku sanjurokkei], além da grande onda, & além de sua série de flores, seus pássaros, quedas d'água, os poemas explicados, o surimono, etc.

Nesse caso, Carson se remete a seus anos finais, em que passou a desenhar um leão por dia. Esses leões eram crença de combater o mal & a falta de paz. Diríamos que, artisticamente, estava matando um leão por dia.

A sanidade pode custar mais. A arte, não menos.

PS: aproveito o ensejo & reforço a sugestão de leitura de Ana Rüsche em seu blog Contrabandistas de peluche, & aponto os leitores na direção da revista Modo de Usar & Co., onde Ricardo Domeneck põe o ensaio & antologia "A textualidade em algumas poetas brasileiras do século XX e início do XXI". Ici:



HOKUSAI

Raiva é um fecho amargo.
Mas é possível abri-lo.

Hokusai aos 83
disse,
É hora de fazer meus leões.

Toda manhã
até morrer

219 dias mais tarde
ele fez
um leão.

O vento vem numa lufada a noroeste.

Os leões oscilam
e saltam
dos topos

dos pinheiros
para

a neve da estrada
ou colidem
um com o outro
sobre sua choupana
suas patas brancas

esmagando estrelas
caminho abaixo.

Continuo a desenhar
na esperança
de um dia pacífico,

disse Hokusai
enquanto rugiam ao fundo.

Um comentário:

E.M. disse...

Dirceu, meu caro, como vai? Por favor, gostaria de entrevistá-lo. Estou com uma pauta que é a sua cara. Se puder me escrever, meu e-mail é edgardmurano@editorasegmento.com.br Um abraço!