sexta-feira, 25 de setembro de 2009

CEFALÓPODE



leio que o polvo gigante é silencioso,
fluindo sem ossos em noite profunda;
sem corpo: cabeça e tentáculos só.
hectocótilo, o seu sexo imóvel;
& comer, um plano de lentas ventosas:
alcança, então prende, consome e se move.
produz uma tinta e escreve com ela
arabescos ilegíveis no oceano,
água que os esquece quando estão impressos
[se diz: rapida scribere oportet aqua]
na melancólica tinta que o camufla.
também os zoólogos comem sua carne?
— imenso, mas sem corpo, o mole covarde
escreve apenas quando foge ao que não sabe.
pegajoso, e o que expele suja o azul.


(poema inédito, do novo livro ainda sem nome nem data)

terça-feira, 22 de setembro de 2009

HOJE

Maiara Gouveia me dá notícia magnífica que não esperava ter sequer nos próximos anos. Abaixo:


Não é preciso dizer mais nada.





Quer dizer, fora o fato de que custa uma pequena fortuna. Cela va sans dire.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O pequeno (grande) milagre


Grande músico, & da mesma geração de músicos que a minha de poetas, Marcus Siqueira me deu o presente de interpretar musicalmente um poema de Icterofagia, "memória, a mãe das musas".

É a melhor leitura que um poema meu já teve, & leitura muitíssimo peculiar, essa que reinventa num ora vacilante ora articulado diálogo de timbres & instrumentos, as hipóteses que a mera palavra se esforçava por sugerir antes.

"Signo Sopro II" é uma surpresa sonora que mimetiza & expande, num discurso instrumental, as sugestões de "memória", "linguagem", "Babel", "milagre", que percorriam o poema. Isto é: a obra musical resultante é mais ampla & mais complexa do que o modesto poema que lhe serviu de impulso.

Mas ecoa igualmente as antigas versões da cosmogonia, como Hesíodo, a partir dessas sutis articulações que querem ser coincidência, ou amor (como Empédocles diz), ou acorde. Como um prenúncio de Pitágoras & da música das esferas, esta música é também poética & filosófica.

Grato & admirado pela obra extraordinária, posto aqui o link para a página com o MP3 da faixa.

A gravação está disponível no CD Música Plural (capa acima), em que vai registrada essa obra de Marcus Siqueira & as de outros músicos brasileiros contemporâneos, também acháveis na página acima, que proponho à leitora & ao leitor (ou ouvintes, em que se convertem imediatamente).

O belo trabalho é da Percorso Ensemble, sob a direção & a regência de Ricardo Bologna.

Gaudete.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Barbara Morton, Gil, Yeats & um lembrete

Daddy doesn't mind a little scandal. He's a senator


É o que diz sábia & humoradamente Barbara Morton, filha de personagem senador, em Strangers on a train (1951). Patricia Hitchcock (acima) faz o papel de Barbara Morton no filme dirigido por seu pai, o nunca assaz louvado mestre Alfred Hitchcock (acima de qualquer suspeita de nepotismo, no entanto).

É claro que o grito de “Fora Sarney” não foi nem será atendido.

Na opinião deste modesto cidadão — que cumpre há pouco mais de 15 anos seu dever cívico (não riam, por favor) de votar — o problema é alguém supor que a reivindicação contida no grito se materializasse com, no mínimo, esses 24 anos de atraso.

O assunto é um ponto morto de discussão, & apenas constato, acima: I think it better that in times like these/ A poet's mouth be silent, for in truth/We have no gift to set a statesman right.

Escreveu nosso caro William Butler, como sabeis.

Mais interessante, porque menos abertamente discutido, talvez seja o fato de Gilberto Gil, agora ex-ministro, artista rico & muito popular, ter se metido a conseguir o apoio da Lei Rouanet (quase meio milhão de reais). E conseguiu.

E não apenas conseguiu como, tendo conseguido & tendo sido perguntado sobre o assunto pela Folha de S. Paulo, desconversou: “Me incomoda ter que especular sobre correção, incorreção, ético, não ético...”, respondeu, & perguntou se, por ter sido ministro, estava impedido de participar por “alguma quarentena”.

Não é questão de alguém ou alguma lei o impedir de.

Pergunto-me se desconversou porque sabe, no fundo, de duas coisas:

1) que é rico & notório, & pode captar dinheiro para um show & um DVD sem ajuda pública, daí tardiamente lhe tenha ocorrido um repente de vexada consciência;

2) que, sendo rico & notório, & embora legalmente nada o impeça de participar da brincadeira, talvez perceba que a desnecessidade completa do ato (sem discutirmos a coisa de um rico passar o chapéu pelo dinheiro público) lhe deu um dinheiro que poderia vantajosamente ter ido a artista ainda jovem, desconhecido & sem os recursos sobrantes de sua riqueza.



Dear ole Billyum


Em todo caso, isso me lembrou uma historinha de 1913, tendo os protagonistas William Butler Yeats & Ezra Pound. Como um contraponto.

A revista Poetry, em 1913, decidiu dar seu Guarantor’s Prize a Yeats, que, na época, era um poeta já mundialmente famoso & homem de meia-idade. O prêmio totalizava 50 libras. Yeats pegou elegantemente dez libras para uma placa comemorativa, em gratidão pelo prêmio (que não vinha de dinheiro público, & do qual não tinha ido atrás).

As restantes 40 libras Yeats pediu que dessem a Ezra Pound, jovem poeta vinte anos mais novo. E, sobre o gesto, Yeats disse à editora da revista, Harriet Monroe:

“Sugiro-lhe Pound porque, embora eu realmente não aprecie com todas as minhas forças os experimentos métricos que ele fez para a sua revista, creio que esses experimentos mostram uma mente de vigorosa imaginação. Ele é certamente uma personalidade criativa de alguma espécie, embora talvez seja muito cedo para dizer qual espécie. Seus experimentos talvez sejam erros, não saberia dizer; mas daria antes os louros a um erro vigoroso do que a qualquer ortodoxia sem inspiração”.

Isso é caráter.

Yeats também tentaria demover Pound de se meter em política, dizendo-lhe, a partir de sua própria experiência como senador, que nenhum artista consegue penetrar a escuridão da mente de um político.

Machado de Assis, incomodado com alguém que não pára quieto, fora do enquadramento.


Para fecharmos ainda mais civilizadamente, resta que eu aponte na direção do chanzos, notável & importante blog de Rodrigo Lobo Damasceno, que acaba de postar seus textos perspicazes sobre Machado de Assis.

http://chanzos.blogspot.com/

E, estando por lá, leitora & leitor caríssimos, convém uma passeada pelos outros textos, igualmente perspicazes & importantes. Crítica literária mais do que digna do nome.