domingo, 20 de fevereiro de 2011


Darren Aronofsky, diretor de Pi (1998), filme fundamental no cinema, sobre um matemático extraordinário, seu professor sábio & sobre como um número descoberto quase ao acaso num aparente bug computacional se torna a chave tanto para judeus ortodoxos q buscam na Torá uma combinação de palavra & número q seja o nome de deus, quanto para umas pessoas muy delicadas por trás da Bolsa de Valores, dispostas a controlar a nova informação numérica q pode prever as flutuações. Inteligentemente, Aronofsky propõe essa linha, mística & matemática, se estendendo também dos meros negócios à ordem mirífica da teologia.

O filme é muito complexo. A onipresença do número na natureza, entrevista na spira mirabilis das galáxias à concha do molusco Náutilus, & às mais complexas descobertas humanas de proporção (cf. Lionardo Da Vinci) lhe dá um princípio q se desdobra, como na mística judaica, em palavra q soletra o código para tudo. Deixei, no começo deste blog em 2007, o trailer de Pi passando numa janela q mantinha com links para o youtube. Aronofsky fez outros filmes excelentes, & uma grande besteira, The Fountain (2006).

Mas agora realmente atingiu um ponto de excelência semelhante a Pi, com Black Swan (Cisne Negro). Não vou falar do filme, uma obra-prima, mas de coisa formidável q o filme suscita intencionalmente, sobretudo se posto sob a luz cegante de Pi, com o qual tem muitas relações.

Uma das hipóteses de Black Swan pode-se traduzir em: o q acontece qdo o artista se torna a obra? A gente supõe q exista uma relação profunda entre quem realiza uma obra & esse resultado, a obra ela-mesma. Discutem em simpósios & tudo o mais qta distância se pode supor entre o artista & aquilo q faz.

Idealmente, não deve existir nenhuma distância . Isso pode ser lido como um romantismo. Não é, ou, sendo, diluiria a força de sua fórmula. A transfiguração do autor no inventar da obra é coisa infinitamente mais antiga, mesmo q “autor”, nesse caso, tenha sido pensado como um canal entre duas instâncias de outra forma isoladas.

A obra de arte perfeita seria aquela em q o artista mergulhasse de tal maneira q se tornasse a obra, & vice-versa; a velha história de abyssus abyssum invocat, ou “o abismo invoca o abismo”: você olha pra ele, ele olha pra você. É o perigo da dissolução na luz ou na escuridão, como toda genuína busca de conhecimento acaba trazendo. Doctor Faustus, sobretudo o de Marlowe, propunha isso, mas Goethe pensava, é claro, em algo semelhante.

No princípio era o verbo. E depois lemos q o verbo se fez carne. Essa correlação, por mais exclusiva q fosse em sua teológica origem, abriu um precedente, q aliás já estava aberto pela velha idéia grega de poesia como um fazer: a palavra põe algo (seja lá o q for) em ação efetiva.

Os egípcios cobriam de signos seus cadáveres, encomendados com sabedoria a uma vida além desta, por caminhos sagrados & secretos, & as palavras tinham o dom de iluminar essa escuridão da ignorância mortal. A cada uma das portas com guardas o iniciado diria: “sei o seu nome e sua função, permita q eu passe”.

Era também a palavra q punha vivo o Golem (& o desfazia), pq a palavra é, como os poetas concretos disseram, verbivocovisual, & pq, além dessa completude sígnica, ela carrega em si uma ancestralidade q nos retorna ao princípio da apreensão das coisas e de sua nomeação, é um elo vivo com o passado remoto & suas transformações. É como a luz: se a física retraça o trajeto de eras em seu caminho, também a palavra guarda possibilidades semelhantes. O sentido alquímico do homúnculo não era literal, por exemplo, mas uma apreensão simbólica de virtudes e potências.

Em geral, & após o romantismo, esse modo de entender uma obra de arte, de q criador e criatura são estranhamente um, & ambos vivos, virou uma banalidade, q os artistas ruins
hoje usam apenas para dizer q lá estão eles, & deram o sangue em sua triste porcaria (alguns pobremente presos à mais simplória literalidade). Ou se tornou uma metáfora do conhecimento q vai além de suas medidas, reduzindo Prometeu a um âmbito caseiro, no Frankenstein da Sra. Shelley, cujo marido poeta * sonhava palavras bordadas & rendadas. Pq o conhecimento é medido sem as proporções mágicas q não apenas o autorizavam antes, mas o instrumentalizavam. Como John Dee, matemático, geômetra, médico, astrônomo & feiticeiro da rainha Elizabeth I escreveu em seu Monas Hieroglyphica: aut discat, aut taceat, "ou aprende, ou cala".

Qqer um q tiver discernimento, no entanto, perceberá como os grandes artistas encarnam suas obras, & como suas obras se tornaram tão peculiares a eles: não de uma forma banal, de tradução barata daquele arcano verbo encarnar, mas como aquelas coisas q se moviam em suas obras foram animadas de vida, dentro de suas próprias vidas.

É um pensamento desconcertante; de certa maneira, faz supor q o artista canaliza forças muitas vezes além de sua compreensão, q moldam (ou distorcem) o tecido da realidade. Platão era dessa opinião jocosséria, & o banimento q cai sobre o poeta na República, penso, deveria ser lido em primeiro lugar como o atestado de q o poeta & a sociedade organizada não se entendem, eles se repelem. E se repelem pq a poesia porá complicações & dúvidas numa vida sem imaginação & corriqueira, organizada pelo Estado para funcionar num sentido amplo & geral, republicano.

É o perigo & também a necessidade deste poder muito específico da poesia; não apenas o das palavras de um verdadeiro artesão delas, mas o da imaginação.

Os estóicos antigos tinham uma teoria muito interessante sobre o assunto, in illo tempore, a teoria do pneuma, o calor em q são canalizadas as idéias seminais q produzem o phantastikón, ou o plasmar algo inventado na realidade, como um fantasma, resultando num lutar com sombras, precisamente como em Black Swan, q, como os melhores leitores dos estóicos fizeram, não decide sobre o q é realidade & o q não é, uma vez q o limite de visão é sempre coisa proporcional às visões & a quem as tem ou não.

As imagens têm poder, a imaginação focalizada, também. As palavras recompõem, por som, desenho & composição, uma parte desse fantasma, dando ao airy nothing a local habitation and a name, como escreveu Shakespeare, justamente sobre esses poderes poéticos, em A Midsommer Nights Dreame (Um Sonho de uma Noite de Verão).

Marsilio Ficino sugeria o tipo de som a se ouvir para determinado efeito na pessoa; sugeria a focalização de determinadas imagens & o convívio com elas, para acentuar determinadas qualidades. Era a mesma hipótese q se espelhava no livro sobre poesia, escrito por Lorenzo de’ Medici, o Magnífico, em meados do século XV. Mas não é apenas um pensamento antigo & perdido nas areias do tempo.

Kandinsky & Mondrian eram muito místicos a respeito do efeito de cores & formas, no q essas potências agenciam; Pound tinha perfeita ciência do poder evocatório & invocatório de certas palavras, assim como de certos ritmos; Arnold Schönberg não era nenhum inocente sobre a qualidade encantatória da música. Etc.

Esquecemos disso pq muito da nossa poesia se tornou lixo demagógico, ou por outro lado teórico, sem técnica (tekhné se traduz por ars em latim, de modo que técnica & arte eram sabiamente uma coisa só), sem imaginação, sem poder simbólico algum sobre o q quer q seja.

Sobretudo pq poucos lembraram desse enorme poder organizado pela poesia & pela arte, & muitos dos q lembraram são gente século XVIII demais para conceber & aceitar coisa tão... tão... fantástica (como os seres aéreos de Shakespeare, lidos em geral como meras gracinhas).

Aronofsky, como todo grande artista, não é um desses. Seu filme, perfeito (palavra oportuna) ao q se propõe, o prova com substância nova para o grande & antigo enigma.

*obrigado pelo ajuste de familiaridade, Maria.

3 comentários:

Rafael Daud disse...

Você precisa tomar cuidado, muito cuidado com o que diz, Dirceu. Mesmo caras, por tudo o mais, bastante atentos como eu, acreditam em muita coisa que lê por aí.

Não que faça isso sem pensar, mas ao contrário, isso me põe a pensar muito.

E, falando de outra coisa, foi muito legal a leitura com o Fernando, figura muito simpática e de uma poesia bastante fina.

maiara gouveia disse...

maiara, que há muito não visitava o demônio, gostou de ter vindo hoje. aí está o dirceu. belo texto! do ouro que afunda. do tipo que exige sair da superfície.

reflexão importante compartilhada. alegre por dizer isso. obrigada.

gilson figueiredo disse...

the best dude 1