domingo, 9 de janeiro de 2011

OVÍDIO, MAS SHAKESPEARE (& O GLOBE THEATRE)

O palco do Globe atrás de mim: não é apenas um teatro, é outra coisa

Já me perguntaram quem eu achava o melhor poeta.

“O melhor poeta”, ponto.

A resposta a essa pergunta esbarra em duas notórias impossibilidades: 1) a de que haja um poeta tão completo q a mera menção de seu nome signifique tudo o q a humanidade possa ter desejado representar com a poesia; 2) a de q eu pudesse saber tanto, & em tantas línguas, q desse conta de fazer surgir o nome brilhante logo após a pergunta.

É uma pergunta impossível.

Não obstante, respondo q, na tradição ocidental, me parece q Ovídio não tem rivais. É uma resposta q convida a Polêmica, deusa suscetível. Traduzi pedaços das Metamorfoses quando era sutilmente mais jovem (& talvez por esse mesmo motivo: os jovens acham q podem fazer qqer coisa) & levava o latim com tinta ainda fresca na minha memória de estudante de Letras.

Nessa operação delicada descobri uma habilidade inventiva infinita, apegada a seu material narrativo & a formar versos q não saem da sua cabeça uma vez lidos. Truques engenhosos, antipatias históricas divertidas (Ovídio detestava o idiota do Aquiles) & o resultado é um poema q foi referência para TUDO o q veio depois, seja pintura, escultura, poesia, prosa, preceptiva, repertórios de discurso figurado, etc.

E é por Ovídio q chego a Shakespeare. Master William talvez tenha sido o poeta q mais aprendeu com o poeta lúbrico de Sulmona. Inúmeras ocasiões de citá-lo, parafraseá-lo, homenageá-lo & tudo o mais se encontram na obra daquele simpático inglês (há controvérsias encantadoras sobre isso) q entendeu a tola humanidade sem usar, naturalmente, o adjetivo depreciativo com q ornei minha descrição. Shakespeare não julga, ou julga pouco: eis a famosa ambigüidade de suas peças q permitem ao cavalheiro & à dama pensarem o q bem quiserem (as you like it) dentro daquelas horas de cuidadosas & complexas relações humanas redigidas em verso & prosa juntamente.

O Shakespeare de A Midsummer Night’s Dream, ou de The Tempest, é obviamente um poeta & um dramaturgo sem rivais, considerando a combinação das duas categorias. Naquelas peças todo artifício possível às duas artes é aplicado com um nível de sutileza & maestria q, se os leitores quiserem, poderão pensar comparativamente em alguns dos últimos quadros de Velázquez, quando a arte do espanhol é tão completa q ele inventa um tipo pessoalíssimo de pincelada, coisa translúcida em parte, em parte ostensiva, & sabendo onde cultivar o detalhe, onde insinuar a forma apenas com manchas.

Se Velázquez pensava a realidade como tinta — ou, melhor dizendo, propunha como a materialidade da tinta via o mundo —, pode-se dizer o mesmo do domínio poético de Shakespeare, do seu modo de escrever verso, ou mesmo de se concentrar no mínimo artesanato de posicionar palavras numa sentença SEM parecer q o faz. Poucos artistas vivem o suficiente para q sua arte nos dê o presente de vermos surgir no homem (ou na mulher) essa segunda natureza de uma arte.

Na maior parte dos bons artistas, & mesmo dos grandes, temos a compreensão do mecanismo de produção de determinada arte elevada a um grau de complexidade q deixa o observador perplexo - como se diante da mais intrincada tapeçaria -, mudo de expressões q valham o q vê; mas o brilho dessa compreensão da vida, q se transforma numa arte sem pontos visíveis de costura, é apenas para um raro & seleto grupo de artífices. Shakespeare é um deles. Da Vinci, qdo deixa um técnico de raios x deslumbrado com o fato de q não tem como explicar como foi aplicada a tinta (sem vestígios de pincelada em um de seus quadros) atesta isso, ao dizer: “o melhor q posso fazer é sugerir q a tinta foi pulverizada sobre a tela”.

Ver o Globe, teatro reconstruído nos moldes daquele velho teatro do final do século XVI, em q várias peças shakespeareanas foram encenadas, mostra q o lugar propiciava parte do desejo & da necessidade de inventar aquelas coisas. Era um teatro rústico, aberto no alto, de onde chovia no público q não podia pagar pelos lugares cobertos, mas q necessariamente entrava muito mais no espetáculo, ao ponto de jogar uns legumes nos atores qdo não ficava muito satisfeito.

Com um ambiente como esse, uma audiência tão variada & caprichosa, é realmente curioso reimaginar a escrita dramática de Shakespeare, ou mesmo o q ele pensava q fazia ao inventar & redigir seus versos. Sabemos, por prova documental, q são ao menos dois os tipos de texto dramático: um, para ser texto impresso; outro, para uso dos atores & da companhia teatral. Esse último é mais modesto como texto, muitíssimo mais prático para efeito de representação. Era, por assim dizer, um texto enxuto e técnico.

Pode-se pensar q era o texto em q se mexia milhares de vezes (embora Ben Jonson tenha escrito, sobre o colega mais velho, q ele nunca havia blotted out a line, & de q pensava: ah, se ele ao menos houvesse rasurado um milhar), antecipando a psicologia do público & suas reações, manipulando essa casa (q era, nas metáforas do séculos XVI & XVII, um mundo, ou de modo paralelo, revertia o mundo em teatro) para os efeitos desejados.

Necessariamente, um grande laboratório: era ver diariamente como as pessoas reagem às diferentes experiências, ou como o drama extraía de cada um uma emoção, ou como poderia torná-las alheias; como determinada canção tinha o dom divino de impor docemente uma inevitável solenidade (como talvez a mais bela canção shakespeareana, “Fear no more the heat o’ the sun”, faz em Cymbeline).

Visitar o Globe no inverno, fechado à apresentação de peças, numa tarde em q os músicos atores da Gabrieli Consort fizeram essa mesma maravilhosa manipulação educativa das emoções (& ator Peter Hamilton Dyer costurando canções q vinham de Chaucer, passavam pelo século XVI & XVI & chegavam a Thomas Hardy), empregando a técnica da palavra cantada, é algo a lembrar, & algo q nos devolve à grande arte de Shakespeare, com novas respostas & novas questões.


O céu, visível além do teto sobre o palco

4 comentários:

Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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Rafaela Gambarra disse...

Olá! Boa tarde!
Shakespeare é mesmo fascinante, né!? Minha mãe é professora de literatura inclesa, acabei pegando dela essa paixão.
Enfim..
tou indo para Londres terça-feira que vem. Pelo site, fiquei achando que o Teatro estaria fechado. Mas pelo seu post... Quer dizer entao que dá para visitá-lo? E o mais importante: quanto custa!? hahah
Por favor, me responda o mais rápido possível :)) bjos!

Dirceu Villa disse...

Rafaela,

o Globe não apresenta peças durante o inverno. Ele apresenta, nesse intervalo, um ou outro espetáculo associado, o tour para conhecer o teatro & eventos educacionais.

Irá voltar creio q em abril.

Isso q comentei foi um concerto de música antiga ocorrido nos primeiros dias do ano.

Não sei os preços. Eles devem divulgar em breve, no próprio site do teatro, dê uma espiada lá.

http://www.shakespeares-globe.org/

E, naturalmente, bon voyage.

D.