Ele levanta questões & muito sensivelmente as deixa em aberto, para a exploração. Eu estava para postar sobre o documentário em cartaz aqui em SP (com 4 anos de atraso) sobre a perseguição do governo Nixon a John Lennon, & creio que ambas as coisas são convenientes, ao que ajuntarei uma pequena observação que fiz, como poeta, em um outro debate recente.
EUA X John Lennon
Domeneck se pergunta sobre a possível inutilidade atual da poesia, & aventa a possibilidade de que esteja apenas “cansado de pertencer à classe dos artistas absolutamente inofensivos”.
Em princípio, eu diria ao meu caro Domeneck que não se preocupasse, que os bons poetas jamais são inofensivos. É preciso explicar como & por quê, mas, antes, a digressão John Lennon.
O documentário The U.S. vs. John Lennon [Os EUA X John Lennon, 2006], de David Leaf & John Scheinfeld, mostra como se pôs o FBI & o aparelho de Estado estadunidense contra aquele camarada finíssimo que cantava algumas das melhores músicas de sua época & falava insistentemente contra o crime descomunal sendo cometido no Vietnã.
Parece chocante a importância que aquele governo brucutu atribuía à arte de protesto de Lennon, que deve boa parte de sua energia performática a Yoko Ono — assim como Ono deveu a ele o escopo incomum a que sua arte performática foi levada, & a habilidade de se aproximar de um público vasto.
Lennon & Ono se utilizavam, basicamente, de estratégias postas em circulação pelos dadaïstas do Cabaret Voltaire: ao invés do ordinário esquema panfletário que todo mundo usava (de modo mais ou menos eficaz, dependendo da eloqüência flamejante), empregaram um método que consistia em atrair a atenção, não apenas pela imensa popularidade dos protagonistas à época, mas também por um pacifismo de “revolução pela alegria” (dixit Nietzsche sobre como deveria ser uma revolução), inventando atos desestabilizadores, como sugerir que as pessoas ficassem em suas camas, deixando, entre outras coisas, o cabelo crescer.
Ou espalhando outdoors com o dizer WAR IS OVER (reminiscente das manchetes de 1945) & de mínimo subtítulo if you want it; ou fazendo concertos perto de ajuntamentos republicanos; ou espalhando tiradas irônicas na imprensa; ou emprestando sua popularidade para os líderes dos protestos, ou para os Panteras Negras, etc.
Eles incomodaram o poder corrupto & sedento de sangue. Incomodaram a tal ponto que a delicada administração de então tentou expulsá-los do país; por sorte, eles podiam pagar advogados caríssimos, que criaram um meio de emperrar a determinação do governo.
Popularidade
Aí é que está: o que Lennon & Ono fizeram só foi possível porque eram extremamente populares.
Porque moviam milhões de fãs no mundo inteiro, tinham dinheiro & disponibilidade (além de extraordinárias coragem & inventividade), & a mídia corria atrás de qqer. coisa que lhes desse na telha lançar.
Uma efetividade da arte em seu próprio tempo & em dimensões palpáveis se dá apenas nessas condições ideais de temperatura & pressão.
A música popular catapulta alguns de seus artistas (mesmo assim poucos) a essas dimensões. Outras artes, como o cinema, também. A literatura, não.
(Se v. pensou em Paulo Coelho, pensou errado, que Paulo Coelho não é um escritor, mas um imenso conglomerado comercial, como o MacDonald’s).
Por que não?
A resposta mais simples & evidente, a primeira, é: porque é preciso ler a literatura. Mesmo a literatura, ou a poesia, exercida como performance vocalizada, não atinge um público enorme por suas naturais peculiaridade & dificuldade (ver o próprio caso de Yoko Ono performer pré-Lennon).
Para se ter um público & operar diretamente nele é preciso ter um trabalho popular. Para se ter um trabalho nesse nível de popularidade, a coisa não pode ser difícil, deve ser possível entendê-la quase de imediato, & em larga escala, cobrindo várias faixas de público ao mesmo tempo.
Os poetas querem ser difíceis? Eles querem afastar suas chances de ganhar uma fortuna & ser lidos pelo mundo?
Creio que não, creio que nem mesmo eles seriam tão estúpidos, mas penso na minha própria poesia, também: é como percebo a linguagem, como sou capaz de registrar determinadas coisas, ou padrões, é o sentido que tenho de um fazer, & nada faço para complicá-lo. É como é, ainda que as pessoas olhem & decidam que não entendem, nem querem entender.

Qui possum facere? disse o cordeiro ao lobo na fábula antiga — e aqui já deslizei sem querer para um latim, bobo & elementar, mas que atrai narizes torcidos & torcicolos.
Ainda assim, uma performance vocal tem mais chance de chegada em um público mais vasto. Um trabalho plástico, mais ainda; música popular, ainda mais; cinema estadunidense: v. é um deus nesta terra liliputiana.
Alcance & escopo
Mas tem o seguinte: não é pela falta de popularidade, da efetividade in loco, que uma arte como a poesia pode ser imaginada como algo inofensivo.
Em um debate sobre poesia, faz pouco tempo, surgiu essa questão muito normal de para quê a poesia? O pressuposto era o contingente minúsculo de leitores dessa arte, prima pobre das outras artes bacanas.
Se a poesia exige tanto & atinge tão poucos, não seria algo realmente inútil, fútil, ineficaz, talvez mero efeito de inércia cultural, & anacrônico?
Foi aí que eu entrei. Não pelo meu envolvimento hipoteticamente emocional como poeta moi-même, mas porque me parecia que as pessoas estavam agindo — embora com a justiça de querer saber — meio ansiosamente.
Daí eu disse que parassem para pensar em como concebem a realidade à volta. A quem devemos nossas idéias de como é o mundo? A filósofos & a artistas de toda espécie.
Nossa imaginação & mesmo nossa consciência formal do mundo é continuamente moldada pelas artes & pela filosofia (laica ou religiosa).
O que os impenetráveis poetas modernos inventaram está cada vez mais se tornando o modo como pensa & age mesmo a mais desligada pessoa imaginável. As concepções de uma percepção fragmentária, cumulativa, poliglota & descentrada estão virtualmente por toda parte, hoje, embora fossem coisas muitíssimo recessivas quando surgiram.
Com “recessivas” quero dizer: meia-dúzia de pessoas estava atenta a essa arte QUANDO ela acontecia. Os demais liam sonetos de almanaque, escandidos nos dedos, com rubim aqui & ali & com verso d’oiro no final — isso qdo. quando liam alguma coisa.
Zero de percepção.
A percepção de uma vanguarda perceptiva demora a ser incorporada, assimilada. Não se pode esperar que essa arte, por melhor que seja (& sobretudo se for a melhor), tenha um efeito muito definido na realidade do momento em que se faz.
Onde estão as pessoas para notá-la? Elas ainda não existem. Ou estão sob a anestesia social que torna o mundo manipulável por políticas (o q. não vai mudar, porque o acomodado é o acomodado & disso todos sabem).

"Your own, personal Jesus, /someone to hear your prayers/, someone who cares".
Voltando a Lennon: ele teve de se tirar da proporção humana para enfrentar algo igualmente desproporcional. Para isso, sua peculiaridade natural teve de tomar contornos mais largos, inclusivos, ele teve de se tornar uma bandeira onde coubesse muito, & um alvo para uma bateria antiaérea que ia de governos poderosíssimos ao anônimo idiota com uma arma na mão.
É a proporção do mártir, & um mártir achata suas próprias ambigüidades humanas & artísticas porque serve a uma causa, em geral a mais nobre possível, uma causa límpida, justíssima, sem sombra.
Um artista tem seu direito à ambigüidade & ao sombrio, tem seu direito de não ser seguido por quem quer um messias, ou um personal Jesus, como o Depeche Mode já descreveu tão bem (& que agradou de Johnny Cash a Marilyn Manson).
Por mais que uma ação nobre tenha repercussão, o artista está tensionando uma corda muito delicada, algo de que ele mesmo entende pouco, porque está fora de seu alcance, & do alcance de qqer. um.
A abnegação exigida para isso é sempre um desafio notável & em geral trágico, mas o contorno desproporcional de pureza que isso exige juntamente é falso, é um efeito de veracidade produzido circunstancialmente & que produz depois sudários & peregrinos.
Um artista — ou este artista — desconfia.
E, desconfiando, pensa numa arte de efeitos talvez mais modestos a curto prazo, mas mais complexa em sua natureza ambígua, & com mais raízes nas consciências a longo prazo.
Eu diria, simplificando: a poesia nunca é inofensiva. Ela é a maior força da História, a mais complexa & arcaica. E ela plasma a vida mental mais repleta de energia, que por sua vez plasma a realidade.
A poesia é discreta, em geral, não faz fumaça, mas o que é poesia hoje é realidade amanhã.
But all this is folly to the world.