quinta-feira, 27 de maio de 2010

CAT POWER ontem



Ela estava visivelmente cansada; mancando; o microfone falhou em “Ramblin’ Woman”: não importa. O concerto de Cat Power ontem no Bourbon Street, em SP, foi memorável.

O repertório é o das últimas apresentações, isto é, músicas de The Greatest (2006) & de Jukebox (2008), com um ou outro acréscimo de dentro & de fora de sua discografia.

“Metal Heart” quase levou a casa abaixo, em versão pesadíssima (aliás, ela está com uns músicos que gostam de tocar pesado. Achei que até aconteceria de ouvirmos algo de What would the community think?, 1996); “Sea of Love”, diáfana, na voz cada vez mais rouca & sussurrada de Chan Marshall. Ela suava & se curvava, bela & esbelta, sobre o único ventilador no palco.

É a anticelebridade, a antiestrela do rock: desfigura suas canções & as dos outros, impedindo a rotina catártica desse tipo de evento, que no caso dela se torna um ritual quase jazzístico das mais improváveis oportunidades de improviso, como aconteceu especialmente com “I can’t get no (satisfaction)” dos Stones, “I don’t blame you”, de seu álbum You are free (2003), para nem dizer a versão mais bizarra que já ouvi de “The house of the rising sun”, folk que os Animals gravaram & fixaram, por assim dizer.

Marshall dissolve as melodias & frases, fixando-se no núcleo de cada palavra, cantando sílaba a sílaba, no máximo de reinvenção engenhosa imaginável.

Se agita angulosa & irregular pelo palco, desajeitada & incrivelmente graciosa; levíssima, ontem, sobre sapatos brancos à la Julian Casablancas, dos Strokes. Grita, murmura, faz rápidos & quase inaudíveis comentários mordazes, sorri de modo luminoso, cutuca a garganta, reclamando, parece se incomodar com cada interpretação que faz.

(Por vezes, de perfil no palco, lembra ela-mesma, anos atrás: a peculiaríssima garota indie que gravou o vídeo de “Cross-bones style”, de 1998).

No fim, correu saltitante para o camarim & de lá voltou com uma enorme cesta de frutas, lançando uma a uma ao público: cachos de uvas, maçãs, peras, bananas passavam voando enquanto todos gargalhavam da idéia esdrúxula.

Ao meu lado, uma fã ardorosa tentava chamar-lhe a atenção. Cat Power, após lançar as frutas & uma porção de outras coisas, se aproximou.

— Give me something, please! — gritava a garota.
— Yeah, but what? — perguntou, solícita, a cantora.
— Anything.

Daí Chan Marshall, a.k.a. Cat Power, fez um gesto de aguardar com o dedo indicador, virou-se pro palco procurando alguma coisa. Achou o set list, que ofereceu à agradecidíssima fã.

E ela estava cansada.

domingo, 16 de maio de 2010

UNE SEMAINE DE BONTÉ, vários motivos



O título, mes amis, é uma brincadeira. Obviamente, quer também chamar a atenção para o fato de que as colagens de Max Ernst de que falei em dezembro aqui no DA:


estão com seus originais oportunamente expostos no MASP, & são uma obrigação de visita para QQER. interessado em arte. Provavelmente a obra-prima de Ernst, que fez da colagem uma possibilidade de narrativa figurada.

Vista de perto, a precisão dos recortes que faz em sua matéria-prima (ilustrações de contos & romances) & a inteligência em flagrar o subtexto social naquelas histórias burguesas de romances & almanaques, são coisas surpreendentes & notáveis.

Alguns recortes só se vêem se você se posicionar como um insano diante dos quadros, procurando fazer com que a luz ressalte algum milímetro na composição.

Mas esta é uma semana particularmente boa por ainda outras razões: expos. & lançamentos. Notem inclusive que os dias correspondem magicamente às horas de abertura, abaixo.

Enio Squeff, um dos maiores pintores & ilustradores brasileiros, terá exposição de seus óleos, xilogravuras, desenhos & aquarelas na Galeria PontoArt, com abertura no dia 18 de maio.

18 de maio, 18h
Rua Inácio Pereira da Rocha, 246,
Vila Madalena, São Paulo



No dia 19 de maio, Marcelo Sahea lança seu livro Nada a Dizer, da Annablume, na Biblioteca Alceu Amoroso Lima. Sahea estará em SP para o lançamento, que terá sua performance PLETÓRAX.

19 de maio, 19h
Rua Henrique Schaumann, 777
Pinheiros, São Paulo

E há, finalmente, a edição da aguardada antologia bilíngüe Canto desalojado, que compila poemas em mais de trinta anos da obra do grande poeta uruguaio Alfredo Fressia, que vive no Brasil & nunca antes apareceu em português, em livro.

A organização & a tradução são de Fábio Aristimunho Vargas, & o lançamento acontece no dia 20 de maio, na Casa das Rosas.

20 de maio, 20h
Avenida Paulista, 37
Cerqueira César, São Paulo


sexta-feira, 7 de maio de 2010

PASOLINI



Pier Paolo Pasolini (1922-1975) é mais conhecido entre nós como cineasta, de filmes como Teorema (1968), ou Decameron (1971), ou Salò, 120 Dias de Sodoma (1975). Colaborou em escrita de roteiro, com Fellini. Mas foi também ativista político na Itália, ensaísta, romancista &, sobretudo, poeta: "o maior poeta italiano da segunda metade deste século", no caso, o XX, como escreveu sobre ele o romancista Alberto Moravia.

Publicou seu primeiro livro em 1941, modestamente, de próprio bolso, com poemas escritos no dialeto friulano &, mesmo assim, vejam só, naquela época & país conseguiu chamar a atenção de um dos maiores críticos & eruditos italianos de então, Gianfranco Contini.

Tão notório crítico da corrupção na política italiana quanto notório homossexual, Pasolini foi morto em 1975 por um garoto de programa. Essa é a versão oficial das apurações da lei, obviamente contestada por pesquisadores, jornalistas & pelo filme Pasolini: um delito italiano, dirigido em 1995 por Marco Tullio Giordana. A hipótese mais forte é a de crime político, feito para parecer latrocínio, ou crime passional.

Tenho trabalhado na tradução de um longo poema, "Il Pianto della Scavatrice", de Le Ceneri di Gramsci (As Cinzas de Gramsci, 1957). Ponho, abaixo, apenas o início da primeira parte, como um aperitivo. É um poema em que Pasolini emprega uma adaptação engenhosa da terza rima do poema teológico de Dante, & da procissão amorosa dos Trionfi de Petrarca, trazida a representar um outro mundo, bem mais material, dos subúrbios romanos.


O Pranto da Escavadora (trecho inicial)

I

Só o amar, só o conhecer
conta, não ter amado,
não ter conhecido. Angustia

o viver um consumado
amor. A alma já não cresce.
Assim, no calor encantado

da noite que cheia desce
pelas curvas do rio e as súbitas
visões da cidade embaçada de luzes,

ecoam ainda as mil vidas,
desamores, mistério, e miséria
dos sentidos, tornando-me inimigas

as formas do mundo, que ontem eram
ainda a minha razão de existir.
Exausto, entediado, torno por negras

praças de mercados, tristes
estradas em torno ao porto fluvial,
barracos e armazéns mistos

com os últimos prados. Lá, mortal
é o silêncio: e ali, na Viale Marconi,
estação Trastevere, é doce o final

da tarde. E lá nos seus rincões,
nos subúrbios, ligam os motores
ligeiros — vestidos ou só de calções

de trabalho, num impulso de festivo ardor —
os jovens, com amigos na garupa,
rindo e sujos. Os últimos clientes

conversam em pé e em alta
voz à noite, aqui, ali, em mesinhas
de bares ainda luzentes e semivazios.

sábado, 1 de maio de 2010

SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO SERIGRAFADO


Marilyn Monroe (1967)

Andy Warhol (1928-1987) foi um artista incomum, o que é um dos maiores elogios que se pode fazer a qqer artista. É certamente o único duchampiano que conseguiu sair da sombra de seu debochado mestre & produzir uma obra de brilho próprio.

Cricríticos o entendem mal: Fredric Jameson não compreende nada do que vê em Warhol — mas estou sendo pleonástico, porque Jameson em geral não compreende nada do que vê.

A exposição na Estação Pinacoteca é muito boa, & trouxe um pouco de tudo: as serigrafias (Marilyn, Mao, Geronimo, Campbell's, etc), a instalação das hipnóticas Silver Clouds (1964: alumínio & gás hélio, com vento movimentando as nuvens de prata no alto da sala), filmes como Blow Job, & aquele que filma o Chrysler Building por horas. E mais.


Geronimo (1966)

Estampa excertos de textos & entrevistas, às vezes apenas uma frase cortante & exata, de mordacidade & inteligência a toda prova, através das quais se percebe que Warhol foi realmente o único a de fato compreender o que são os EUA, qual é o cerne da cultura gerada pelo país.


"Sempre achei que políticos e atores resumissem o modo de vida americano", ou quando afirma que mesmo os bandidos se dão bem (sobre a série Most Wanted, em que reproduz os procurados, nesse hábil jogo de palavras), porque o que as pessoas querem são estrelas.

Um capitalista (ou capetalista, como escrevia o demente iluminado do Gentileza) com ponto de vista crítico? Todo esforço de redução de Warhol a algo sem ambiguidades falha miseravelmente, porque não dá conta de recobrir sua arte desconcertante, muitas vezes decididamente grotesca, mesmo qdo. parece adorar o star system.

"Acho que todo mundo devia ser uma máquina", ou "Olhe somente para a superfície, lá estou eu. Não há nada por trás daquilo".

Ambas as coisas são verdadeiras: suprimia espinhas de rostos, porque não é o que vale a pena fixar, & reduz o tridimensional a duas dimensões freqüentemente. Mas é um bidimensional ilusório.

Da série Electric chair (1964)

Por trás — nesse lugar que diz não existir — há uma porção de ambiguidades para o bom leitor. Na série Electric Chair (1964-1965) em que Warhol produz variações de cor & contraste sobre a foto de uma cadeira elétrica, escreve: "mas quando você vê uma foto horripilante muitas vezes ela realmente não tem qqer efeito".

Warhol adota sempre um tom ingênuo & direto para dizer coisas não apenas educadas, mas finamente perceptivas: ele sabe perfeitamente bem que a repetição brutal esvazia as coisas de sentido. É o mesmo mecanismo que emprega inúmeras vezes, & não apenas com coisas horripilantes.

Sua insistência é sempre paródica, deformante, entra no glamour & o desfaz inserindo nele uma tragédia de gestos marcados, de luz direta, de uma crueldade desumana, que mimetiza a publicidade, invertendo-a.

Race Riot (1964)

É engenhosíssimo ao retratar Nixon & nomear a obra "Vote McGovern", em 1972; seu Race Riot, de 1964, é poderoso & ecoa no tratamento que George Romero deu à questão racial no final de Night of the Living Dead, de 1968.


Basquiat



Warhol não foi importante apenas como artista, mas descobriu um dos grandes pintores dos últimos anos, Jean-Michel Basquiat, & não podemos esquecer do Velvet Underground, naturalmente (a capa & o esquema warholiano foi apropriado pelos Dandy Warhols, banda recentíssima. O vídeo de "You were the last high" é cheio de espírito oitentista & de esperto uso de montagem fragmentada, que produz o efeito repetitivo do glamour frio & estranho de Warhol). Apenas para citar duas de suas atividades fora do papel de artista.



Capa de Velvet & Nico por Warhol


Exposição que veio em excelente hora, & deveria ser um modo de começar a fazer com que houvesse um pouco mais de inteligência no modo de entender sua obra.